A cada encontro do Usina de Valores senti que a luta deve continuar
Por Monique Moura
As dinâmicas vividas pela sociedade na atualidade causam grande preocupação para aqueles que são ativistas dos direitos humanos, principalmente quando se remete ao contexto das favelas.
O discurso de ódio às minorias e a propagação da violência policial têm tomado conta das redes sociais. Um espaço que deveria ser para expor ideias e interação social, tem se tornado um veículo de comunicação muito expressivo. Com isso, a disseminação de textos ofensivos e que propagam ódio tomou uma proporção preocupante.
Outro ponto relevante da atualidade é a divulgação de fake news, que são usadas para enganar e ludibriar o pensamento das pessoas, inventando histórias e fatos que atacam os direitos humanos e seus defensores. Essa ferramenta também tem sido usada para fortalecer o discurso de que “defensores de direitos humanos são defensores de bandido” , reduzindo o valor histórico da luta por direitos a uma falácia do senso comum.
No tocante ao contexto das favelas isso fica ainda mais sério. Temos autoridades do Estado defendendo que, para garantir a paz nas favelas, é preciso mais operações policiais, o que deixam os moradores no meio de uma guerra que é dita pelo Estado como “guerra às drogas”. Mas, na verdade, é uma guerra aos pobres, pois os que sofrem diariamente com o processo somos nós, pobres e favelados.
É ainda pior ouvir dos próprios moradores de favela discursos que legitimam a ação policial. Mesmo que suas próprias vidas estejam em risco, e que a presença policial gere graves violações de direitos. Existem pessoas que não percebem como as ações do Estado, no que diz respeito a segurança pública nas favelas, são danosas e promovem mais violência.
Infelizmente, a compreensão do que de fato são “direitos” persiste em ser, equivocadamente, relacionada àqueles que estão em conflito com a lei, o que não permite que os direitos sejam vistos como para todos.
Pensando nesta realidade, vemos a criação do curso Usina de Valores como um movimento de resistência e combate ao ataque que o discurso dos direitos humanos vem sofrendo, sobretudo nos territórios de favelas.
Tendo como objetivo fortalecer a atuação no campo dos direitos humanos nos diversos espaços da cidade e construir uma escuta e um diálogo mais qualificado, contra as manifestações de ódio, o curso se torna um espaço fundamental para troca de experiências entre os diversos grupos. Além disso, possibilita o aperfeiçoamento do discurso entre as diferentes personalidades com as quais temos que lidar em nosso cotidiano.
Não à toa o curso foi articulado para acontecer dentro de uma das maiores favelas do Rio de Janeiro, o Complexão do Alemão, um território composto por diferentes grupos, com pensamentos diversos, o que já pressupõe uma diversidade de diálogos no trato dos direitos humanos.
Tendo como os valores que orientam os debates ao longo do curso o Bem Viver, a Escuta Ativa, o Coexistir na Diferença, o Engajamento Político e a Dignidade Humana, o curso demonstra preocupação em lidar com a temática em diversos âmbitos da vivência em sociedade.
Tentado entrelaçar os valores, a fim de construir um convívio mais equilibrado entre os membros da sociedade, se busca fomentar a compreensão de Bem Viver como algo que deve ser construído coletivamente e não só no plano individual, o que requer um aprendizado sobre como Coexistir nas Diferenças, o que necessita do exercício da Escuta Ativa entre as pessoas.
A partir da relação entre escuta, coexistir e bem viver, o grupo se fortalece. Com isso criamos uma consciência coletiva sobre a necessidade de continuar lutando por direitos e pela democratização do acesso a tais direitos. Assim, chegamos a um Engajamento Político, que tem por objetivo a luta pela garantia da Dignidade Humana.
Dito desta forma parece que estabelecer relação entre os valores definidos pelo curso é uma coisa simples. Porém, a dinâmica como estas relações implicam um esforço diário e exaustivo, principalmente no que diz respeito a convivência com as diferenças.
Os grupos que compõe a sociedade são bem diversificados, cada um luta por uma causa que lhe é particular. Porém, também pode ser lida como coletiva, pois, em sua maioria, se busca a igualdade de direitos.
Essa convivência de diferentes grupos pode ser vista entre os próprios alunos do curso Usina de Valores, que são de favelas diferentes, têm formação acadêmica diversificada, são diferentes fisicamente, possuem gostos diferentes, possuem trajetórias de vidas diferentes.
As diferenças entre as pessoas fomentam um debate mais ampliado, trazem os pensamentos e ideias de diferentes personagens que compõe a comunidade. É de suma importância o exercício da escuta no espaço onde diferentes agentes estão, por mais que se discorde, o diálogo deve ser estabelecido a fim de chegar a um consenso, um ponto em que as divergências não interfiram no convívio.
A experiência de participar do curso Usina de Valores deixou um sentimento de pertencimento em mim. Se antes falar sobre direitos humanos me preocupava por não saber como lidar com certos questionamentos, hoje tenho a compreensão de que ouvir é preciso para fortalecer meu próprio pensamento, eliminar as dúvidas, e conseguir desenvolver uma linguagem que seja mais próxima daqueles com que estabeleço diálogo.
A sensação de estar junto de iguais em pensamento me fez ver como circular por outros territórios é importante para estabelecer vínculos. Me sinto privilegiada por estar neste lugar, um espaço onde se pode falar sobre direitos humanos sem a preocupação de sofrer represálias. Essa sensação de pertencer à algum lugar enriquece a alma e fortalece o ativismo por direitos.
Um dos encontros mais marcantes que tivemos foi a presença das Mães de Manguinhos, grupo que se organizou após sofrer diretamente com a violência do Estado. Algumas sofreram a maior violação que existe, que é a violação do direito a vida.
Os relatos das mães são carregados de emoção, elas vivenciaram uma dor muito profunda com a qual têm de lidar todos os dias. Mesmo assim, conseguiram criar forças para lutar por justiça. São um exemplo na luta por direitos.
O senso comum, baseado na criminalização da pobreza, é utilizo para justificar as ações policiais. É comum ouvir coisas como: “se estava na favela e foi baleado é porque boa coisa não era”. A partir do relato das mães que perderam seus filhos para a ação do Estado podemos vislumbrar dois pensamentos.
O primeiro é de que os agentes do Estado não se importam se a vítima é inocente ou não. E, segundo: se a vítima tiver passagem, seja por qual motivo for, já justifica a morte do indivíduo.
Por vezes, podemos ser levados a tirar conclusões precipitadas. Porém, após a experiência proporcionada pelo curso, de ouvir a voz das Mães de Manguinhos, conseguimos compreender como analisar todo o contexto dos casos que chegam até nós. É fundamental não efetuar julgamentos que só contribuem para a disseminação do ódio.
Uma das coisas que mais me marcaram durante o curso foi a linguagem utilizada para tratar a temática dos direitos humanos, diferentemente do âmbito acadêmico. O curso proporcionou o direcionamento de um fala que é muito particular de nosso cotidiano, a qual podemos utilizar na padaria, no mercado, com nossos vizinhos, com parentes.
Ou seja, podemos ampliar nosso círculo de diálogos contribuindo para a disseminação dos direitos humanos para todos, sendo um dever do Estado promovê-los.
O curso Usina de Valores proporcionou uma experiência que levarei para minha vida profissional e pessoal: a convivência com pessoas diferentes, em um espaço diferenciado e a oportunidade de conhecer pessoas que possuem uma trajetória de luta por direitos.
Os debates que foram promovidos e todas essas atividades contribuíram para enriquecer não só meus conhecimentos, mas, também, para aprender a lidar com as diferentes circunstâncias que podemos nos deparar ao longo do trabalho na defesa dos direitos humanos.
A cada encontro que foi realizado ficamos com a sensação de que a luta por direitos deve continuar e que devemos nos esforçar cada vez mais para a efetivação dos direitos e para que os indivíduos da favela se reconheçam como sujeitos de direitos. A favela e os moradores tem voz e, nós, enquanto ativistas e defensores dos direitos humanos, temos que contribuir para que esta voz seja ouvida.
*Este conteúdo foi escrito de forma espontânea por alunos do Usina de Valores no Rio de Janeiro.