Elânia Francisca

Saúde mental e vivências afetivas de mulheres periféricas

Por Elânia Francisca

“Fiquem juntas!
Nenhuma de nós, nenhuma,
vai aguentar sozinha
Fiquem juntas!
É preciso procurar as outras
É preciso ser procurada pelas outras
Fiquem juntas!
Uma chora, a outra enxuga
Outra cai, há uma que levanta
Fiquem juntas!
Nenhuma de nós, nenhuma,
vai aguentar sozinha
Precisamos, mais do que nunca,
ter sempre uma mulher por perto
Fiquem juntas!”
(Cidinha da Silva)

Há quase dez anos eu tenho me dedicado aos estudos sobre gênero, sexualidades e o modo como os afetos são construídos e vivenciados por mulheres e meninas periféricas. Minha dissertação de mestrado foi sobre isso: busquei entender o modo como meninas negras moradoras do distrito do Grajaú vivenciam suas primeiras experiências afetivo-sexuais, mas para além dessas vivências – que envolvem apaixonamentos e relacionamentos amorosos – existem vivências afetivas de amizade e cuidado mútuo que também merecem atenção na trajetória de vida de meninas e mulheres.

O poema que escolhi para iniciar a reflexão sobre a importância do cuidado à saúde mental de mulheres na luta contra as opressões é de Cidinha da Silva e eu o recebi via Whatsapp numa tarde de sexta-feira em que, coincidentemente (ou não), eu estava refletindo sobre a dificuldade de encontrar tempo para estar com outras mulheres que gosto e admiro. Escutei o poema e reescutei, porque fez muito sentido, porque acredito realmente que estar com outras mulheres, praticando o autocuidado e o afeto de forma coletiva nos mantêm saudáveis e fortificadas.

Nesse mesmo dia, pude sentir um peso danado ao perceber que meu fim de semana estaria cheio de atividades de trabalho no sábado e reunião de coletivo no domingo que, embora seja um espaço de diálogo e construção coletiva, é um local de discussão de pautas e encaminhamento de ações para a semana.

Para nós mulheres, principalmente mulheres negras, não falta desejo de encontrar com outras mulheres. Nós queremos estar juntas, tal como Cidinha da Silva nos alerta e orienta, nós queremos o colo umas das outras. Contudo, esse imaginário machista e racista que nos coloca no lugar de mulheres negras guerreiras-fortes-lutadoras, inscreve em nós a ideia de que devemos estar em todos os lugares, o tempo todo e de forma exemplar. Isso chega ao ponto de nos sentirmos culpadas cada vez que vivemos um momento de lazer com as nossas.

É como se não tivéssemos o direito de dizer “não posso ir à reunião hoje, não dou conta dessa atividade, eu estou cansada”. Essa luta que não cessa e da qual não podemos fugir ou pausar é um dos impactos do racismo e do machismo que se inscrevem em nossa subjetividade.

Daqui de onde falo, no contexto periférico, os ônibus começam a circular bem cedo. Dentro deles estão muitas mulheres (majoritariamente adultas e negras) indo para seus trabalhos. Muitas delas, diaristas. No final da tarde, horário de pico, todas elas estão de volta, carregando sacolas de supermercados, apressadas para os afazeres que as aguardam em casa.

Quando se tem folga aos fins de semana, é reservado o dia de sábado para a faxina e o domingo para preparar-se para a semana que virá. Sair de casa significa pegar busão e trem – que aos domingos circulam com frota e velocidade reduzidas. Se com frota normal já é tormento, imagine com metade dos ônibus na rua?

Trabalho, busão, filhos, reuniões de coletivo, casa, outro trabalho (porque o primeiro não supre todas as necessidades econômicas) são elementos que fazem parte da rotina da mulher periférica.

Em meu trabalho como psicóloga, são frequentes os relatos de mulheres periféricas que dizem ter desejo de encontrar outras mulheres para dialogar sobre coisas simples da vida, que suas angustias diminuiriam se pudessem ter momentos de trocas com suas companheiras. Mas o cansaço diário e a ausência de tempo as obrigam a priorizar o sono como uma forma de recarregar as baterias para enfrentar a labuta que reiniciará no dia seguinte.

Precisamos de tempo para nos cuidarmos, é preciso diminuir a rotina de trabalho doméstico das mulheres como uma das formas de possibilidade de promoção encontros saudáveis e afetuosos.

E por que trabalhamos tanto? Por que não paramos nunca?

O IBGE publicou em março de 2018 um compilado de informações sobre as condições de vida das mulheres no Brasil e revelou que as mulheres trabalham 72% mais do que os homens em tarefas domésticas, sendo que a maioria dessas mulheres são negras e com idade acima de 50 anos.

Quando falamos sobre feminismo, estamos falando também da divisão de tarefas diárias entre homens e mulheres. Não são raros os momentos em que pautamos nossas necessidades enquanto mulheres e alguns homens perguntam como podem contribuir com a nossa luta. Creio que não seja difícil para um homem concluir que uma das diversas formas de diminuir as horas de trabalho doméstico de mulheres, seja responsabilizar-se pelo cuidado do ambiente de casa, tornando a divisão mais justa.

Trabalhamos muito em casa e fora dela porque ainda cai sobre a mulher a responsabilidade individual de manter um ambiente coletivo limpo e as pessoas alimentadas. Nós queremos aproximações, queremos contato, queremos simplesmente ter um dia para dizer: “bora tomar uma breja sentadas no quintal?” E a outra, sem nenhum peso na consciência poder dizer: “Bora”. Nós queremos esse abraço básico. E isso também promove saúde mental.

3 comentários

  1. PAULA RENATA QUEIROZ DOS SANTOS DOS SANTOS em 22 de maio de 2019 às 23:49

    Quero participar

  2. Maria da Penha Silva Gomes em 28 de maio de 2019 às 08:17

    Oi querida!

    Leio seu artigo indo no ônibus sentido Centro-Campo Limpo. Acordei às 4h para fazer as leituras para a pós-graduação. Estamos estudando Mobilidade neste mês. Escolhemos o modal a pé. Além de outras pautas incluímos a mulher. Faço parte da I turma do curso “Cidades, Planejamento Urbano e Participação Popular” da Unifesp Leste.
    Dentre periféricos, tenho refletido que não é somente regionalização, mas sim uma condição de gênero, raça e cor. Eu moro no Centrosto de São Paulo e minha rotina não difere das citadas em seu artigo.
    Sigamos, tomando cerveja, sempre que possível.

    Abreijos!

  3. Fernanda em 17 de setembro de 2019 às 15:07

    Olá,
    Sou graduanda em psicologia e estou cheia de dúvidas quanto ao tema do meu TCC. Sempre leio alguns trabalhos/artigos na tentativa de trazer mais clareza as minhas ideias. Busco sempre por temas de periferia, de gênero, machismo, estigmas, entre outros. Obrigada por compartilhar esse ótimo texto.
    Beijos!

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