Sobre masculinidade, masculinidades plurais e o papel do masculino

Por Róger Cipó

Provavelmente você já deve ter ouvido o termo ou lido sobre masculinidade. Há quem diga que essa já é uma das palavras mais comentadas nas redes sociais, em 2019, e aparentemente, nós homens estamos, finalmente, nos provocando a pensar o que é ser homem em uma sociedade baseada nas relações de poder patriarcal. Mas, por que só agora? 

O que acontece para que só agora enfrentemos essa discussão? 

Na verdade, essa é uma discussão em curso há algum tempo, mas que ganha ares de novidades, nesse momento que diferentes setores da sociedade se mobilizam para fazer o debate. Por questões óbvias, pois não dá mais para sustentar uma ideia de ser homem e de masculino que traz em sua construção muito mais de violências, produzindo e provocando violências, que de possibilidades de coexistências. Falar sobre masculinidades não se limita ao estímulo para que homens expressem seus sentimentos. A questão deve atentar para o que produz essas expressões. Há de se levar em consideração também que há homens que sequer tem direito de sentir e pensar. 

Caminhamos para um lugar de produção de ódio simbólico e letal, que tem base na forma com que homens definiram as identidades de homens.E esse deve ser o ponto crítico de todo diálogo.  

Não se trata de retrocessos. É o avanço de um projeto de poder que tem homens brancos cisgêneros héteros como centro, regulador e definidor do status quo, de raça, classe e gênero, organizando as relações numa perspectiva de domínio de corpos outros. Essa é uma das caras da masculinidade posta como ideal, ou hegemônica. É também nesse lugar que se estabelece os parâmetros de homens bem sucedidos, que não choram, bonitos, viris, chefes de família, inteligentes,  conquistadores e autorizados a fala e ação. Nessa cultura patriarcal ocidental, também está estabelecido que qualquer outra narrativa que fuja a essa forma, ou que ameaça tal forma, é passiva de extermínio. Por exemplo, a minha condição de homem negro está na linha de genocídio por representar aquilo que ameaça o, bem definido por Cida Bento, pacto narcísico da branquitude. 

Até aqui, tal construção de ser homem, tem sido espaço fértil para feminicídio, crimes passionais, lgbtqia+fobias, racismo, sexismo e outras violências das dinâmicas sociais. Logo, nós temos um compromisso humanitário de revisitar nossas identidades e romper com o modus operandis a fim de enfrentar esse processo de atentados sistemáticos às vidas plurais. 

Mas, e eu com isso? 

A primeira vez que acessei a discussão sobre masculinidades foi no livro “Peles Negras, Máscaras Brancas”  do psicanalista martinicano, Franzt Fanon, que explicita como o racismo determina as dinâmicas sociais de gênero e hierarquia racial.  Fanon questiona e alerta:“Que quer o homem?” Que quer o homem negro? Mesmo me expondo aos ressentimento dos meus irmãos de cor, direi que o negro não é um homem, […]O negro é um homem negro; isso quer dizer que, devido a uma série de aberrações afetivas, ele se estabeleceu no seio de um universo de onde será preciso retirá-lo”

Aos homens pretos, pensar masculinidades e seus atravessamentos  é antes de tudo, pensar a construção de sua humanidade, interrompida por quase séculos de escravização. Um ser que foi reduzido à categoria coisa, tendo seus corpos e força dominados para servidão, não participou do processo de se construir homem e nem foi alçado à tal lugar. 
Logo, o que nós homens pretos temos como noção de masculinidade é o lugar da exposição e produção de violência e poucas condições de sensibilidade, o que nos insere na dinâmica como seres potencialmente nocivos ao bem estar social.  Não à toa, há um projeto de sociedade que há cada 23 minutos, assassina um jovem negro, entre 15 e 29 anos. Não por acaso, passa pela nossa noção de masculinidade legada a urgência de criar estratégias de sobrevivência e de reivindicação de nossas vidas, quando lidamos com um estado que a polícia como seu braço armado e ferramenta de repressão de nossas humanidades.

Passa também a constante renúncia de uma masculinidade que não nos cabe, pois se pauta em violências, e se tratando de um grupo historicamente violentado, está em nossa condição de resistência, romper com tais ciclos. 

Nessa perspectiva, alertamos para que os grupos que se disseram hegemônicos se desloquem dos confortos de seus lugares e se atentem para outras possibilidades de construção e reconstrução de masculinidades plurais. Não se pode haver uma transformação social efetiva e um combate às violências provocadas pelo masculino, sem deslocamentos. Assim, também é difícil pensar que os mesmo grupos que até aqui definiram, sejam os mesmo a resolver os problemas sociais, apenas reconfigurando os lugares, a partir de seus próprios lugares. 

É preciso que a sociedade se mobilize para romper com padrões a fim de garantir a dignidade humana. É preciso ouvir o que homens negros têm a dizer. É preciso ouvir o que homens trans têm a dizer. É preciso ouvir o que mulheres (cis e trans), e comunidades lgbtqia+ têm a dizer sobre essas relações. Esse movimento de diálogos sobre masculinidades, deve acontecer para ampliar a discussão e descentralizar as narrativas, para que outros agentes sociais colaborem de forma eficaz no processo, principalmente aqueles e aquelas diretamente impactados por tal cultura. 

Esse é o meu convite para ação. Convido, justamente no momento que estou em reconstrução e reconciliação com as possibilidades de ser que melhor, para mim e para minhas comunidades. Convido, porque quero transformar junto e todos e todas somos responsáveis pelos novos caminhos, pela educação e construção de homens mais humanos. Convido porque ainda há tempo de mudarmos.

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