O grito das Mães em ebulição: mulheres que irão parir uma nova sociedade

Por: Cintia Neli da Silva Inácio e Francilene Gomes Fernandes

Gerar um filho, senti-lo por cada momento em nosso ventre, após, colocá-lo no mundo, todo cuidado, as fraldas trocadas, o amor a cada mamada. Vê-lo crescer, se desenvolver, conhecendo o mundo com uma curiosidade e inocência que nos encanta. Os ensinamos a andar, falar, ficamos aflitas com o primeiro dia na creche longe dos nossos cuidados, nosso coração quer protegê-los porque no fundo sabemos que longe de nós, o perigo os espreita.

Eles começam ir à escola, começam a trabalhar, mas mesmo assim, ser mãe exige que cuidemos deles por toda vida, independente da idade, sempre estaremos a zelar. Repetimos como um mantra: filho leve o RG, cuidado na rua, se atente às amizades, estude, estude.

Ser mãe é ter sonhos compartilhados
Deixando os sonhos próprios por amor ao filho, de lado

A atual conjuntura segue de forma linha dura
Apontando o dedo e com a mão na cintura
Julgando todas as Mães que não estão com seus, ausentes
Devido a esse Estado negligente

A maternidade segue com os netos que indagam,
cadê minha mãe ou meu pai?

O que segue doendo ainda mais
Seguem Mães com medos e dores
Na incerteza se o Estado aparecerá
Para mais um dos seus amores
Da pior forma tirar 

Seguem Mães da luta, que com o poder de transformar
Luto em luta, num piscar de um olhar
Semblantes sofridos
Atentas aos cuidados, agradecem aos filhos
Que aparecem para contribuir com essa luta desleal
E o Estado insiste em dizer que os filhos dela que foram meninos mal

Mães seguem ouvindo os cantos de seus filhos MC’s
Ao ver um boné, um jaleco da hora
A memória de uma Mãe e a dor no peito aflora

Mulheres organizadas em movimentos, como o das Mães de Maio, escrevem a realidade, mesmo que isso incomode parte da sociedade que dão as costas para essa verdade. O Movimento também reverência às ancestrais que iniciaram essas lutas, por isso Tereza de Benguela, és uma das mais fortes inspirações. O levante do Movimento Mães de Maio também se referencia na “dica” dada pela Angela Davis, “quando uma mulher negra se movimenta, toda estrutura se movimenta”. O movimento segue se movimentando, sempre pautado na ancestralidade,  mas eis a interrupção, quem era para proteger, chega como de repente deixando a Mãe desamparada, para essa dor a Maternagem nunca estará conectada, o corpo se vai, o amor de Mãe permanece, mesmo com a ausência física a lembrança de cada momento em que nossos filhos estiveram conosco, permanece.

Por mais que o Estado tente mostrar que eles foram “desgostos”. Seguem sendo nossos filhos, seguem a carência, ausência e a preocupação, será que onde estão tem comida, estão descansando, quem está cuidando. Coração de Mãe, sempre com os filhos, segue divagando. Ser mãe é pensar, será que eu posso no lugar dele ficar? Suas dores sentir os seus sonhos executar. Não tem como coração de Mãe com essa ausência acostumar.

Nossa ancestralidade vem de mulheres como Carolina Maria de Jesus que nos ensinou que escrever sobre a miséria e a vida infausta dos favelados, escancarar essa realidade, é essencial.  Por termos aprendido com essa guerreira, sabemos que pautar a maternidade nos dias de hoje é expor que vivemos num país onde  temos, segundo censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE),  mais de   11,6 milhões  de mulheres nesta  condição, e destas famílias comandadas por mulheres, 56,9% vivem abaixo da linha da pobreza . São milhares de mães solo, em sua maioria negras, que vivem cotidianamente, todas as mazelas da desigualdade social brasileira, desigualdade que se acirra, frente ao racismo estrutural. Carolina Maria de Jesus sonhava poder falar sobre seu cotidiano. Era revoltada, não acreditava em ninguém, odiava os políticos e os patrões, porque o seu sonho era escrever e o pobre, para a burguesia, não poderia ter ideal tão nobre. Carolina sabia que ia angariar inimigos e jamais recuou, como ela, seguimos angariando os nossos.

É a partir desta realidade cotidiana dilacerante que mulheres, como as Mães de Maio, construíram-se militantes para se contrapor a toda esta engrenagem da violência de Estado, perpetrada pela Polícia Militar. O movimento social é composto, majoritariamente por mulheres, por mães, familiares e amigos de vítimas da violência do Estado, principalmente, via seu braço forte, a polícia. O movimento surgiu a partir da iniciativa de quatro mães, Débora Maria, Ednalva Santos, Vera de Freitas e Vera Lúcia, que conseguiram, ao longo de anos, politizar sua dor. As quatro tiveram seus filhos executados sumariamente por grupos de extermínio formado por policiais na semana dos Crimes de Maio. Uma das vítimas na Baixada Santista – sendo um caso emblemático – evidencia a barbárie ocorrida: o filho de Débora, Rogério Silva dos Santos de 29 anos, gari há 6 anos era pai de um menino que à época possuía 3 anos de idade.

Mulheres como Débora Silva, atual coordenadora do movimento, que mesmo com suas vidas esfaceladas pela brutal perda de um filho, resistiram e resistem, lutando vorazmente por Justiça. Nosso movimento nasceu da dor e sofrimento de mães de vítimas da Baixada Santista que conseguiram transformar algo individual numa bandeira de luta coletiva pela defesa de direitos e, principalmente, para exigir a efetividade de investigações sobre os Crimes de Maio de 2006. Desde seu surgimento, as Mães de Maio tiveram como principal conquista, trazer à tona a verdade sobre os Crimes de Maio, contribuindo para nomear aquele massacre de forma devida em contraposição à falácia de “Ataques do PCC” como a imprensa propagou em conluio com a classe dominante para ocultar a verdade dos acontecimentos. O movimento integra a Rede Nacional de Familiares de Vítimas de Violência Policial, bem como uma Rede Global, que inclui o movimento Black Live Matters dos E.U.A, e coletivos da Colômbia e México.

Nestes quatorze anos de luta, sem dúvida, uma das maiores perdas do movimento foi a morte abrupta e prematura da nossa querida Vera Lúcia Gonzaga dos Santos. No dia 15 de maio de 2006 ela perdeu, assassinados: sua filha Ana Paula, grávida de nove meses de Bianca e seu genro, Eddie Joey. Por quase 12 anos, Vera carregou consigo a dor das perdas ao mesmo tempo em que buscava justiça e denunciava a violência de Estado junto a outras mulheres. No terceiro dia de maio de 2018, Verinha, foi encontrada morta em sua casa, na periferia de Santos, litoral paulista. Ela se tornou mais uma das vítimas dos Crimes de Maio de 2006.

Maio de 2006 foi um divisor de águas na vida de Mães, em sua maioria pobres e negras, que perderam seus filhos de forma brutal. Para se  manterem lúcidas e vivas, elas foram obrigadas a se construírem mulheres-militantes na luta pela verdade e justiça, culminando em um longo, árduo e pesado caminho percorrido em várias instituições dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, todos parte da engrenagem da violência do Estado. Engrenagem que mói e dizima seus filhos, seja os encarcerando de forma tão indigna, matando-os lenta e simbolicamente, seja executando-os pelo arbítrio do policial que determina julgando pela cor, pelo lugar que moram, pelo que representam, a sua sentença de morte, sua pena. Pena que se estende a suas famílias e mães e que nos impacta diretamente, material e imaterialmente.

As mulheres das Mães de Maio, vem se posicionando, contrapondo-se à política de genocídio apresentada e justificada como Política de Segurança Pública, em nome da ordem, sob a falácia da guerra às drogas. Mas, as Mães sabem que nada mais é do que desculpa para matar. Mães de Maio, vem denunciando o destrato do Estado para o povo que deveria estar sendo amparado. Mães de Maio vem dizer: Direitos Humanos, também incluem o direito de viver! O movimento virou lei no Estado de São Paulo, mas as mães não se satisfazem com a lei, estão na luta, para a implementação e efetivação, pois nada que está no papel, se não for posto em prática, tem sentido.

Mães de Maio, manifestam sua indignação pela violência de Estado sofrida, envolvendo-se em tantas outras trincheiras de luta. Envolvem-se nas questões da miséria, da fome, questões habitacionais, de gênero, nas pautas LGBTQI, com a ponte que está caindo, com a educação das quebradas. Lutam contra a redução da maioridade penal, contra intolerância religiosa, contra racismo e preconceito. Onde há   injustiça, Mães de Maio, estão lá puxando a revolução e transformação “batendo no peito”

De pesquisadas à pesquisadoras, neste período elas foram se transformando inclusive em  pesquisadoras forenses. Romperam as fronteiras da maternidade, do país. Estiveram presentes, aguerridas, em Seminários, Congressos e atos internacionais. Exigiram da ONU e da OEA que nenhum crime ocorrido com seus filhos que tiveram suas vidas ceifadas pelo Estado, deixem de ser apurados e que   a justiça seja feita.

As Mães que o Estado tentou interromper, gritam pelos filhos desaparecidos forçados, essa é uma pauta que lhes é muito cara. Dezenas de Mães, desde a ditadura civil militar brasileira, até a atual “democracia”, seguem sem corpo de seus filhos que jazem insepultos por aí, seguem sem a verdade, com suas famílias, sem ao menos terem tido um velório, aquela despedida, ferida que segue aberta.

Mães de Maio, sente dor que não será tratada com nenhum remédio ou terapia, não tem pesquisa que consiga, acabar com essa agonia. Seguem firmes nos atos, nos saraus, escrevendo livros, dando palestras, batendo pesado nas cobranças. Como sempre dizem, não existe dinheiro no mundo que fará a nossa família acalentar o coração, pois perdemos com tiros, sumiços, parte do nosso coração.

De grito dos excluídos ao cordão da mentira, greve geral, apoio às famílias no período da pandemia, defendendo as crianças do olho gordo e da ganância, defendendo o ECA, e os direitos humanos. Mães de Maio não é partido, não se aliena, e também não se apequena. Cobra justiça do Estado, quer apoio às famílias, e às comunidades.

Vem crescendo o número de aliados, esses seguem lado a lado, e pelo movimento como “filhos” já são considerados. Tem filhos e filhas por todo Brasil, apoio do exterior, de seminário a roda de conversa, mesmo que o sistema tente destruir de formas mais diversas, segue firme a relação Mães parindo uma sociedade que vai estar mais “sorrindo”.

Mães de Maio não é uma bandeira a ser hasteada, mas sim uma bandeira para a luta não ficar desamparada. Se envolvendo em tretas, elaborando grafite, zines, quadrinhos, músicas, filmes, documentários. Tem mestre, doutor, e todo tipo de trabalhador. Tem camisa e moletom, boné e faixa, para usar tem que ser firme na luta ou vai levar um escracha. Para usar, tem que entender, vestir a camisa é estar na luta e ajudar a sobreviver, não dá para usar e uns likes tentar galgar, não serve para desfile de moda, não adianta somente vestir tem que mergulhar na luta, saber que existem famílias com dores e outras esperando a volta de um corpo.

Seguimos sendo a voz, pois junto por justiça, Mães de Maio “segue com nóis”

Sim nossos mortos têm voz, para além de um grito, um chamado à justiça, e também reparação. Nossos Mortos têm voz, grito ecoa por onde mães e familiares estão a passar. O mundo vai parir uma outra sociedade, essa sociedade vai ser mais justa, igualitária, sem genocídio, gritam as Mães, a quem tente tapar os ouvidos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALMEIDA, A.M. “Estado autoritário e violência institucional”. In: Latin American Studies Association. Montreal – Canadá, 2007. 

FERNANDES, F. e SZMYHIEL, A. Desaparecidos de maio de 2006, uma história sem fim: um desafio para o Serviço Social na perspectiva de direitos humanos. Trabalho de Conclusão de Curso. Faculdade de Serviço Social. São Paulo: PUC-SP, 2007.

FERNANDES, G.F.  Barbárie e direitos humanos: as execuções sumárias e desaparecimentos forçados de maio (2006) em São Paulo .2011. 142. Dissertação de Mestrado. PUC-SP. São Paulo.2011.

TRINDADE, J. D. L. “Os direitos humanos para além do capital”. In: BRITES, C. M. e FORTI, V. Direitos Humanos e Serviço Social: polêmicas, debates e embates. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011b.

ASSUMPÇÃO, S.R, AMADEO, J. Violência de Estado no Brasil: uma análise dos Crimes de Maio de 2006 na perspectiva da antropologia forense e da justiça de transição – relatório final [recurso eletrônico] / São Paulo: Universidade Federal de São Paulo, 2019. 223 p.

1 comentário

  1. Flora em 27 de agosto de 2020 às 22:26

    Que potência de texto. A trajetória de mobilização, ativismo e luta por direitos à população negra é liderada por mulheres. São o nosso fôlego, constroem estratégias de reivindicação, persistem e inspiram. A luta é necessária, mas espero que seja para que um dia sejam apenas mães junto aos seus filhos, e não precisem mais ser mais de luta.

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