Arte de fundo amarelo e lilás, com texto que diz "A herança do bem viver e as comunidades negras brasileiras. Por Vanessa Barbosa."

A herança do bem viver as comunidades negras brasileiras

Por Vanessa Barboza

Compreendemos que o bem viver também é uma perspectiva de vida dos povos originários de Abya Ayla, como uma sabedoria que resiste através dos séculos de colonialidade e capitalismo feroz.  Neste sentido, os descendentes de populações negras trazidas de países africanos, desenvolveram noções próprias de direitos humanos ao chegarem ao Brasil. Isto aconteceu nas formas de organização que estes grupos realizaram.

As comunidades negras desenvolvem formas próprias de bom convívio e estratégias de sobrevivência, de suporte mútuo e acolhimento. Quem vive ou nasceu nessas comunidades, conhece tradições e costumes de afeto e acolhimento. A despeito do racismo, da falta do Estado e seus equipamentos ou da sua presença na repressão a pessoas negras, esta parcela da população desenvolve suas formas de bem estar.

Direitos fundamentais e direitos para todos foram projetos dessas populações aqui no Brasil, ainda que no período do sequestro de negros africanos em nosso país não existissem intituições modernas e democráticas. Desta forma, grupos com línguas e dialetos diferentes, famílias que eram rivais, todos estes se organizavam a partir de uma necessidade imediata: a sobrevivência. Não somente a sobrevivência física material, mas a permanência enquanto grupo de identidade. Suas formas de permanência se concretizavam não somente através do trabalho e do vínculo com a terra, mas de vínculos ancestrais e familiares.

Considerando estes elementos podemos ver que a identidade se estabelece na ancestralidade, relação espiritual, familiar e histórica, conjunto de práticas e valores desenvolvidos no convívio entre pares, portanto forma de concretizar a vida. Algo que permanece de forma atemporal: constituinte do passado, desenvolve ferramentas para o presente que se qualifica enquanto projeto de futuro. Isto se fez real na formação dos quilombos, que se estabeleceram a partir de táticas militares e de acampamento dos povos bantu. 

Também no desenvolvimento das religiões de matriz africana, em especial o candomblé, que através dos cultos aos orixás, corporificaram acolhimento, desde negros escravizados, passando pela permanência de memórias, pela organização da vida em bairros periféricos em cidades como Salvador, Maranhão, Recife e Rio de Janeiro. Nestas comunidades o projeto de bem viver se concretizou através da busca de um sentido para existência em realidades massacrantes. 

Algo que começou nos quilombos e nos candomblés se ramificou em bairros, nas relações familiares e na distribuição de renda. Bairros que surgiram de remanescentes de quilombos ou de ruas que surgiram a partir de famílias que permaneceram em locais por necessidades diversas: subsistência, divisão de espaço para moradia, para desenvolver relações comerciais com outros bairros e surgimento de novos vínculos familiares. 

Espaços que passaram a ter significado além das necessidades imediatas, mas onde se realizam rituais diversos, festas, brincadeiras e cuidado mútuo. Aqui o padrão comunitário se realiza em ato. A título de exemplo podemos mencionar o comércio ambulante nas capitais e de confrarias religiosas como a irmandade da boa morte, na cidade de Cachoeira, interior da Bahia. 

É necessário observar, que o bem viver entre comunidades negras se concretiza além de um ideal, de um projeto, ou de um conjunto de valores como dito acima, mas como a apropriação dos instrumentos do Estado, sob lideranças comunitárias, associações de bairro, babalorixás e ialorixás que exercem influências nos espaços. Se opondo aos tentáuclos do modo de viver ultracapitalista, que acirra individualismos e desumanização, encurralando a população negra brasileira para o extremo da sobrevivência, o bem viver é uma herança que sustenta a comunidade, e alimenta imaginário, a fala, os afetos em viver.

No fim das contas, a formação deste diverso repertório desenvolvido por comunidades negras sempre foi o esforço para viabilizar uma vida de conforto familiar, integração social, estabelecimento de laços e fortalecimento de significado. Assim, o bem viver, aqui é o sentido de existência entre as comunidades negras.

Referências

MUNANGA, Kabenguele. Para Entender o Negro no Brasil de Hoje: História, Realidade. Ed. Global. 2004.

TRAVASSOS, Elisabeth. In: TEIXEIRA, João Gabriel L.C., et al (org) Patrimônio

imaterial, performance cultural e (re)tradicionalização. Brasília, UnB, 2004.

HONNETH, Axel. Luta pelo reconhecimento: a gramática moral dos conflitos

sociais. São Paulo: redeEditora 34. 2003.

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