A pandemia e as incertezas do futuro: o que as religiões têm a nos dizer?
Por Rachel Daniel (Articuladora do Usina de Valores)
É comum, nessas buscas e construções de futuro, recorrermos a espiritualidade quando a ciência não nos oferece todas as respostas, que nos parecem urgentes, de forma concreta e rápida. A espiritualidade pode ser lugar de acolhimento para muitos, uma vez que dá apoio, gera pertencimento, tira do isolamento e oferece saídas quando tudo parece impossível. A religiosidade não só dialoga com a nossa identidade mas, pode trazer à luz caminhos possíveis.
Diante da pandemia que assola o mundo, a busca tem sido por algo ainda indescritível. Nesse propósito, acreditando que é possível construir perspectivas de futuro a partir do diálogo religioso, nos perguntamos quais são os sentimentos, interpretações e responsabilidades dos templos e espaços religiosos frente à pandemia e de que maneira as espiritualidades podem auxiliar a humanidade na construção de futuros possíveis a partir de agora? Guiadas por essa reflexão convidamos a teóloga e cientista da religião Angélica Tostes e a Iyá Adriana de Nanã, Iiyalorixá zeladora do Ilê Axé Omó Nanã para compartilharem conosco seus relatos sobre pandemia, religião e futuro.
Na Quinta-feira, às 18h, o Usina de Valores promove em seu instagram a LIVE: Voltar ao normal ou construir o futuro? Entre o Pastor Joel Zeff e Mãe Flávia Pinto, mediado por Rachel Daniel. Dando continuidade aos diálogos inter-religiosos com vistas na construção de uma cultura de paz e de uma sociedade mais justa.
Como está sendo a quarentena para você? Quais os sentimentos envolvidos?
Iyá Adriana de Nanã: Pra mim a quarentena está sendo uma oportunidade de rever práticas sociais. Tenho pensado muito o quanto a sociedade já vinha doente muito tempo antes do COVID-19. Depressão e muitas questões relacionadas a saúde mental já havia nos chamado atenção no terreiro e percebo que nesse momento, por exemplo, as pessoas estão angustiadas e alteradas pelo fato de ‘não poder ir trabalhar’, sendo que a maioria já não aguentava o seu trabalho, então, na verdade, acho que a grande dificuldade das pessoas na atualidade é terem que ficar consigo mesmas. Se diminuímos o ritmo e as interações sociais, acabamos sendo obrigados a ver e enfrentar questões pessoais que estavam escondidas, mascaradas. É momento de se olhar no espelho e se ver realmente.
Os sentimentos são vários: Ora estou frustrada, por ver a total falta de educação em saúde do nosso povo. O brasileiro sequer tem conhecimento básico do seu próprio corpo, o que dirá entender na prática sobre um vírus que é algo que não se pode ver a olho nu. Isso impacta muito na reação popular a uma pandemia. Hora sinto um misto de raiva e tristeza, ao ver o Estado (governos federal, estadual e municipal) investindo descaradamente na morte do povo preto e pobre. Veja: em São Paulo o primeiro hospital de campanha foi perto de Perdizes, no Pacaembu bairro nobre da cidade, não foi em Itaquera, nem Brasilândia ou Sapopemba.
Angélica Tostes: A quarentena tem sido momento de muita reflexão. Eu penso que para todo mundo. Então, as questões de: que tipo de vida eu tenho buscado? Que tipo de vida eu tenho construído? E além disso, o que é a vida? São coisas que passam na nossa cabeça quando estamos em uma situação de luto. Porque é um luto, é um sentimento de luto. E a casa do luto tem esse potencial de trazer essas questões que antes não foram pensadas.
Acredito que estamos em um momento do recalcular a rota como humanidade e como indivíduos. São muitos os sentimentos: a melancolia, as ausências, não estar perto de familiares, de amigos e amigas, as preocupações com o futuro do país – porque além de uma pandemia a gente está enfrentando uma crise política que não é de hoje. Ou seja, a pandemia só escancarou as desigualdades, escancarou as violências, a necropolítica, esse caos como fundamento desse desgoverno; essas coisas também abalam a gente. E eu espero que continue abalando, porque, cair em um inércia, cair nesse tédio – esse estágio de tédio do mundo em que nada me abala, em que nada me toca -, é um estágio de indiferença e acho que um momento como esse pode levar a uma indiferença.
É também uma luta dentro dessas multidões de pensamento, como diz o Salmo, cultivar essa esperança. Os sentimentos são misturados, são mesclados, a gente tem que aceitar também essa contradição, não negar a contradição de sentimentos, mas abraçar, entender e analisar.
Qual o significado desse momento que estamos vivendo em termos de religião/espiritualidade?
Iyá Adriana de Nanã: Em termos da espiritualidade, a matriz Africana tem registros em escritos antigos do trato com ‘inimigos invisíveis’, onde isso pode ser interpretado também na relação ao vírus, que teoricamente ‘não pode ser visto’. De minha parte, vejo o Planeta como um organismo vivo que no esforço de sobrevivência, reage aos agressores, que no caso somos nós. No período de isolamento, para os países que fizeram de verdade, tivemos, inclusive, relatos de peixes reaparecendo nos canais de Veneza, queda drástica na poluição do ar no território Chinês entre outras situações.
Por outro lado, tenho a tendência de sempre observar o que a espiritualidade está me proporcionando com aquela situação, seja ela boa ou ruim. Sempre busco um caminho de aprendizado com o que está posto, e neste caso, o que essa situação tem nos ensinado sobre afeto e relações. Fico me perguntando o quanto tenho abraçado os meus, parado para dar atenção, há quanto tempo não visito ou falo com minha mãe, pai, avô ou outros agregados queridos, há quanto tempo não dou atenção ao filho que mora comigo… São essas coisas que tenho refletido durante este período.
Angélica Tostes: Eu acho que no sentido da espiritualidade a gente pode ter uma reconexão maior com as questões dessa subjetividade religiosa. Pode ter um apego maior e já tem tido. A gente vê o fenômeno das igrejas, o fenômeno das lives religiosas, dos cultos e da insistência das igrejas cristãs manterem suas portas abertas, com muitas realizando cultos quando ainda era proibido. Então, vai ter uma volta maior da religião e da espiritualidade que está para além de bom e ruim. Agora, que tipo de espiritualidade estamos falando? Que tipo de ética essa espiritualidade tem? Porque eu vejo muitas religiões, muitos templos, igrejas, movimentos religiosos que têm negligenciado o próximo, uma coisa que contradiz totalmente com as crenças dessas espiritualidades.
No Hinduísmo, não apenas no Hinduísmo, mas nas tradições orientais, a gente usa muito a flor de lótus. E o que é a flor de lótus? Ela nasce na lama, só que mesmo assim ela não se contamina com a lama. Ela é uma flor autolimpante. Então, ela está na lama, mas ela não se contamina. Eu acho que esse é o grande desafio para as religiões: não se contaminarem com o desamor, com os fundamentalismos e com as desigualdades. Nós como seres humanos, também devemos ter esses pés de lótus que não se contaminam. Na tradição cristã tem “não vos conformeis com as coisas deste mundo”. As pessoas usam esse versículo para falar sobre moralidade, só que: o que é o mundo? Utilizando essa dicotomia. Aqui no Brasil é essa politica de morte, é o extermínio da juventude negra, é a violência doméstica que tem crescido nessa pandemia, são as famílias que têm rejeitado seus filhos e filhas LGBTQI+. E como que é essa espiritualidade? Essa espiritualidade, não importa qual seja, se não estiver ligada à questões da vida – da vida cotidiana – será desconexa. Então a gente vai utilizar essa espiritualidade apenas como Marx já falava, “ópio”. Como algo para suportar a realidade e não algo que pode e deve alterar essa realidade.
Centros religiosos/espirituais possuem um papel importante na conscientização sobre a pandemia?
Iyá Adriana de Nanã: Para além das questões subjetivas e espirituais, acho crucial o envolvimento dos templos religiosos no que tange a orientação e conscientização de seu público, quanto a gravidade deste vírus. É muito perigoso quando a religião quer remar contra a ciência – um erro como esse pode causar a morte de muitos. Mesmo que num futuro publiquem desculpas públicas, desculpa, alguma trará de volta aqueles que morreram em consequência da desinformação. As famílias destruídas jamais serão reestabelecidas. O que será capaz de curar a ferida e a dor de uma mãe que enterrou seu filho?
Angélica Tostes: Para mim não existe uma interpretação metafísica para o que vivemos. É uma coisa da contingência da vida, algo que aconteceu. Porém, o ponto não é o que aconteceu, é o que a gente faz com o que aconteceu. Para o enfrentamento e soluções para o futuro acredito na potências das religiões unidas nesse momento de pandemia. Um diálogo interfé na ação e vida cotidiana. Os enfrentamentos interfé têm sido construídos nas ruas, com máscaras e ações de solidariedade. Em São Paulo, religiosos e religiosas de diversas tradições têm se unido para a doação de kits de higiene e alimentação para pessoas em situação de rua. Umbandistas, candomblecistas, católicxs, muçulmanxs, evangélicxs tem construído isso juntos e juntas.
Qual seria o papel das religiões na construção de novos caminhos para o futuro pós Covid-19?
Iyá Adriana de Nanã: Nosso papel enquanto sacerdotes será de acolher a dor das famílias que perderam seus entes e de apoiá-las na superação e resignificação desta tragédia, buscando, nos valores filosóficos – cada um em sua tradição – ferramentas e tecnologias sociais que nos conduza a uma vida com mais empatia, mais amor, mais qualidade de vida e, principalmente, o resgate da vivência comunitária que é totalmente o contrário do individualismo que vivemos até aqui. Rogo a Osalá para que eu esteja errada, mas pela total falta de gestão da crise por parte dos nossos governantes, aguardo um estado de pós guerra, com centenas de milhares de família sofrendo por sua perda.
Que Babá mi Osalá nos cubra com seu Alá e nos esconda da dor e da morte!
Angélica Tostes: Por muito tempo a religião foi excluída de análises sociais. Acho que os pensadores têm retomado a religião, principalmente a religião pentecostal, como um fator muito importante para o diálogo, principalmente em se tratando das esquerdas. A religião tem um papel fundamental na construção de sociedade, então, quando a gente pensa na construção de novos caminhos para o futuro pós COVID-19, a religião está ali no cerne, aqui no Brasil pelo menos.
Sabemos que as práticas e discursos fundamentalistas têm permeado o imaginário religioso de muitas pessoas dentro do cristianismo que está para além do pentecostalismo ou do neopentecostalismo, incluindo também o catolicismo e as suas alas conservadoras, e, é um papel nosso, como religiosos e religiosas, teólogos e teólogas, disputar essas narrativas. Para além de disputar, construir junto com o povo novas narrativas de espiritualidades. Isso é muito importante. Não é apenas o embate, mas é a construção comunitária. Então a gente precisa estar com as pessoas, precisamos estar com as religiões, com os religiosos e religiosas nessa nova construção da espiritualidade, nesse novo futuro de humanidade e humanização pós COVID-19.