A promoção da dignidade humana e a Lei Maria da Penha

Juliana Maia Victoriano

No dia 7 de agosto, a Lei 11.340 de 2006, que criou mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, conhecida como Lei Maria da Penha, completou treze anos de existência. A Lei Maria da Penha é o resultado exitoso da luta, resistência e mobilização de mulheres no Brasil e no mundo, e foi pensada e elaborada por e para mulheres, após o Estado brasileiro ser considerado negligente e omisso pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, em 2002, na resolução do caso de violência doméstica que teve como vítima Maria da Penha Maia Fernandes. 

No Brasil, o enfrentamento da violência doméstica ganhou destaque na agenda feminista a partir da década de 1970. E, em 1985, foram criadas e implantadas as primeiras Delegacias Especiais da Mulher e, a partir de 1993, a violência contra a mulher passou a ser considerada violação de direitos humanos. Durante os governos de Fernando Henrique Cardoso aconteceram pequenos avanços. Por exemplo, o Brasil ratificou a Convenção Interamericana para Prevenção, Punição e Erradicação da Violência contra a Mulher e a jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos foi aceita. Além disso, no mesmo período, foi criado o Programa Nacional de Direitos Humanos com o compromisso de proteção às mulheres. 

Os movimentos feministas foram determinantes no processo de enquadramento da violência doméstica contra a mulher como problema social, político e jurídico, que é uma consequência da desigualdade de gênero no âmbito doméstico, construída socialmente, (Saffioti, 1987, pp. 8-21), violando direitos humanos das mulheres.  A mobilização do direito, através do uso estratégico e político das categorias de violência, gênero e direitos humanos (Maciel, 2011) possibilitou a ampliação do diálogo sobre o tema da “violência de gênero” com mulheres inscritas em realidades sociais distintas, com a sociedade civil, com os homens e também com o Estado, criando um ambiente sociopolítico positivo ao reconhecimento da legitimidade da reivindicação por uma lei especial em matéria de violência doméstica e familiar contra a mulher. 

A Lei Maria da Penha, no seu artigo 5º, considera como violência qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial. E, no artigo 6º, estabelece que a violência doméstica e familiar contra a mulher constitui uma das formas de violação dos direitos humanos. Em 2015, foi criada uma legislação penal para coibir homicídio de mulheres, a Lei 13.104/2015, conhecida como a Lei do Feminicídio, que introduz o feminicídio como qualificadora nos crimes contra a vida e altera o rol dos crimes hediondos. Segundo a referida legislação, o feminicídio é um crime cometido contra a vida de uma mulher, em razão da sua condição de sexo feminino, ou seja, quando envolver: (i) violência doméstica e familiar e/ou (ii) menosprezo ou discriminação à condição de mulher. 

No entanto, apesar da criminalização da violência doméstica e da recente introdução do feminicídio ao Código Penal, a violência contra a mulher ainda é expressiva, de forma que as representações sociais, culturais e religiosas dos papéis de gênero que impactam a percepção e/ou a tolerância de mulheres sobre a violência doméstica.  A literatura feminista considera que a influência do aspecto religioso é um dos principais pilares culturais e políticos que sustentam o patriarcado e a heteronormatividade como sistema de poder. (Vaggione, 2015). Isto porque, historicamente, o cristianismo atribuiu um estatuto de subordinação às mulheres, muito influenciado pela narrativa estigmatizada da história de Eva, considerada uma mulher pecadora e incapaz de resistir à tentação, motivo pelo qual precisava da tutela masculina. Este estatuto de subordinação da mulher foi incorporado à cultura ocidental, à cidadania e até ao direito secular, especialmente na América Latina, em razão da colonização ibérica na região, de maneira que “o direito secular transmutou as normas religiosas em normas sociais, a família cristã em família nacional e o pecado em delito” (Vaggione, 2017: 26-27).

 No Brasil, o cristianismo desde sempre exerceu influência ideológica na política, no social e, também, na mentalidade moral e sexual, em razão do empreendimento colonial marcado e justificado pelo cristianismo e a sua missão civilizatória e evangelizadora. Assim, a construção sócio religiosa cristã dos papéis de gênero relegou a mulher branca ao ambiente doméstico, e a mulher negra, que sequer era considerada humana, à escravidão, objetificada e propriedade do senhor de engenho.  

A teóloga feminista Ivone Gebara (2000, p.125) afirma que: “A violência contra a mulher está relacionada com o discurso da religião cristã, visto que esta expressão religiosa tem apoiado a subordinação da mulher a partir das doutrinas que legitimam e sacralizam o sacrifício e o sofrimento”. No mesmo sentido, as cientistas da religião e feministas Sandra Souza e Carolina Teles (2009, p.8) sustentam que: “A representação sócio cultural da mulher sofredora, resignada e submissa, é resultado da tradição cristã e, frequentemente, evocada por lideranças religiosas e por religiosos ordinários, os fiéis e, principalmente, as fiéis.”

Assim, nós, enquanto seguidoras e seguidores de Jesus de Nazaré, temos a responsabilidade e o dever de enfrentar e confrontar toda a história de opressão e subjugação feminina legitimada pela igreja e pelo discurso da religião. Primeiro, devemos reconhecer que a estrutura machista e patriarcal impõe dor e sofrimento às mulheres; depois,  reconhecer todo e qualquer ato de violência contra as mulheres – seja física, simbólica, emocional, patrimonial, sexual – como violação de direito e da dignidade das mulheres e também como pecado, a medida que nos afasta de Deus; e, por fim, através de atitudes de reparação histórica, resgatar a contribuição das mulheres na construção da sociedade brasileira e das nossas igrejas,  reconhecer a importância das mulheres no discipulado de Jesus de Nazaré e destronar todas as interpretações sexistas das narrativas bíblicas. 

Promover a dignidade humana das mulheres é transformar o ambiente religioso em um lugar seguro, acolhedor e comprometido com a emancipação das mulheres de toda violência e amarras sociais, culturais e religiosas. 

REFERÊNCIAS:

GEBARA, Ivone. (2000) Rompendo o Silêncio: uma fenomenologia feminista do mal. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2000.

MACIEL, Débora. (2011) Ação coletiva, mobilização do direito e instituições políticas: O caso da Campanha da Lei Maria da Penha. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 26, n. 77, p. 97-111, out. 2011.

SAFFIOTI, H (1987). O poder do macho. São Paulo: Moderna, 1987.

SOUZA, Sandra e TELES, Carolina (2009). A Casa, As Mulheres e a Igreja – Gênero e Religião no contexto familiar. Fonte Editorial, 2009. 

VAGGIONE, Juan Marco. (2017) La Iglesia Católica frente a la política sexual: la configuración de una ciudadanía religiosa. Cad. Pagu, Campinas, n.50,  e175002, 2017.

VAGGIONE, Juan Marco.(2015) “A religião e a política no tempo dos direitos sexuais e reprodutivos” In ROSADO, Maria (Org.) Gênero, feminismo e religião: Sobre um campo em construção/organização. 1 ed – Rio de Janeiro: Garamond, 2015. 

VAGGIONE, Juan Marco.(2016) “Sexualidad, derecho y religión: entramados en tensión” In SÁEZ, Macarena y FAÚNDES, José Manuel Morán (Editores) Sexo, Delitos y Pecados Intersecciones entre religión, género, sexualidad y el derecho en América Latina. Center for Latin American & Latino Studies, American University, Washington, D.C, p.17-47.

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