AQUILOMBE-SE
Por Antonio Bispo dos Santos (Nego Bispo)
Nós extraímos os frutos nas árvores…
Eles expropriam as árvores dos frutos!
Nós extraímos os animais na mata…
Eles expropriam a mata dos animais!
Nós extraímos os peixes nos rios…
Eles expropriam os rios dos peixes!
Nós extraímos a brisa no vento…
Eles expropriam o vento da brisa!
Nós extraímos o calor no fogo…
Eles expropriam o fogo do calor!
Eles expropriam o fogo do calor!
Nós extraímos a vida na terra…
Eles expropriam a terra da vida!
Nós [•••] concedemos livre e ampla licença ao rei Afonso para invadir, perseguir, capturar, derrotar e submeter todos os sarracenos e quaisquer pagãos e outros inimigos de Cristo onde quer que estejam seus reinos [•••] e propriedades e reduzi-los à escravidão perpétua e tomar para si e seus sucessores seus reinos [•••] e propriedades”. (Bula “Romanus Pontifex”, Papa Nicolau V, 08 de janeiro de 1455).
Lendo esse e vários outros documentos históricos do Euro cristianismo monoteísta, tais como: alguns trechos da bíblia, sermão do padre Antônio Vieira etc, não sobrará dúvidas… As bases ideológicas que sustentam as sociedades colonialistas são fundamentadas e sustentadas cosmologicamente.
Nesse sentido, as defesas dos povos contracolonialistas também foram e são fundamentadas a partir das suas cosmologias. Dito isto, vamos analisar alguns processos do sistema colonialista para entendermos melhor o que está acontecendo no atual contexto histórico: podemos começar observando, que desde o início do sistema colonialista, nesse lugar que tinha várias outras denominações e que por imposição externa passou a ser chamado Brasil, até a lei Áurea de 13 de maio de 1888, todos os modos de defesas dos povos originais e suas organizações foram considerados como comportamentos e organizações selvagens.
Já os povos africanos tiveram seus modos e organizações denominadas Quilombos e foram tratadas historicamente como organizações criminosas. A lei Áurea não revogou as leis que criminalizavam essas organizações, ou seja, tratou apenas do suposto fim da escravidão…Porém houve um silenciamento sobre elas.
Por outro lado, criminalizaram os saberes, modos e fazeres de todos os povos afros, tais como: os batuques, sambas, capoeira, casas de terreiros de matrizes Africanas e todos e quaisquer gestos que significassem etc. Só na constituição de 1988 é que tanto as organizações dos povos Originais como dos Povos Afros passam a ser consideradas organizações de direitos… porém os saberes, modos e fazeres, compostos em suas trajetórias históricas, principalmente nos casos de defesas, não são reconhecidos como patrimônios próprios e portanto essenciais para os seus protagonismos.
Assim sendo, os direitos concedidos pela constituição de 1988, tanto para os povos Originais como para os povos Afros… são direitos de bases colonialistas. Só a título de ilustração vamos observar alguns exemplos: Tanto os povos Originais como os povos Afros, sempre usaram algumas ervas especiais de forma biointerativa, tanto nos cuidados com a saúde e como forma de lazer, aliás, esses povos não fazem as coisas separadas… quando cuidam do lazer estão cuidando da vida como um todo, tanto é que tudo se faz tocando, cantando e dançando.
No entanto, essas práticas não foram absorvidas de forma explícita pela atual constituição. A maconha, por exemplo, hoje só pode ser usada na área da saúde e se processada pelos “saberes” Euro acadêmicos coloniais, quando, na verdade, os povos Originais e os povos Afros possuem muito mais saber sobre o uso dessa erva… A Capoeira não é ensinada nas escolas como uma atividade de educação física, sob a alegação de que não existem mestres(as) de capoeira com formação acadêmica na área… No entanto, existem muitos(as) professores(as) de educação física ministrando aulas nas atividades em que não possuem domínio prático… Enfim, em todas as atividades desses povos podemos perceber algum tipo de criminalização e ou discriminação.
Institucionalmente os povos Originais e os povos Afros não participaram do chamado pensamento nacional e, portanto, não ajudaram a compor formalmente o tal do estado democrático de direito. Ainda em caráter confirmativo, podemos comparar o que aconteceu com os povos do Quilombo dos Palmares, no século 17; Canudos, no século 19; Caldeirão e Pau de colher, no século 19, e o que está acontecendo hoje, em pleno século 21, com os povos dos Quilombos Rio dos macacos, na Bahia, atacados pela Marinha Brasileira, e Alcântara, no Maranhão, atacado pela Base militar Brasil/Estados Unidos e vários Quilombos e Aldeias no Brasil inteiro, atacados por empresas das áreas de mineração, energia, ferrovias portos estaleiros, resorts especulação imobiliária etc…O que não é diferente dos ataques praticados contra os povos das Favelas, casas de terreiros e demais povos que resistem historicamente contra o colonialismo.
Diante de tudo isso, vale a pena perceber algumas diferenças que existem entre a cosmologia Euro cristã monoteísta e as cosmologias ditas pagãs politeias. A primeira, a cosmologia dos colonialistas funciona a partir de um único Deus, onipotente, onisciente e onipresente. Segundo seus seguidores, esse Deus está no céu. Então, para vê-lo, é preciso olhar em uma única direção… E como os sentidos são conectados, as pessoas vêem, pensam e agem da mesma forma, nesse caso na linearidade e ou verticalidade, logo, fica fácil entender os saberes, modos e fazeres coloniais.
A segunda, a cosmologia dos povos contracolonialistas, funciona a partir de várias divindades e são vistas em todas a direções… Considerando-se que a terra é redonda, logo podemos deduzir que esses povos vêem, pensam e agem na circularidade… Também não é difícil entendermos os saberes, modos e fazeres contracoloniais. Por serem de matrizes de pensamentos bem parecidas, os povos Originais e os povos Afros, logo confluíram nas lutas contracolonialistas desde a chegada dos primeiros europeus nessas terras ora chamadas Brasil e mantiveram essas confluências até serem reconhecidos como povos de direitos pela constituição federal de 1988.
Ocorre que ser reconhecidos de tal forma não os garantiu o protagonismo de suas trajetórias, o que, consecutivamente, não proporcionou suas autonomias. Ou seja, o colonialismo não acabou. E por continuar o colonialismo é que continua a luta e por continuar a luta, as análises precisam ser o mais precisas possíveis, pois quem analisa mal, planeja mal e executa pior ainda. Já os povos Euros fizeram sua trajetória unilinear, expropriando tudo que puderam dos demais povos e consolidaram tudo como seus direitos absolutos na mesma constituição.
Ao mesmo tempo em que a constituição de 1988 é um espaço de confluências no campo do direito colonialista para os povos Originários e povos Afros, é também um espaço de transfluências para novas confluências desses povos em seus próprios territórios… eis aí uma movimentação que a ditadura do estado dito democrático de direito não suporta, pois essa tão propalada democracia que tem como maior efeito a camuflagem da colonialidade não resiste a essas novas confluências.
Ainda vale ressaltar que ao editar a Bula, Romanus Pontifex, através do Papa Nicolau V, credenciou o estado para fazer a expropriação de todas as condições de vida dos povos não cristãos, ou seja, fazer as atrocidades que não caia bem para um povo santo fazer… No entanto, o povo da igreja e o povo do estado sempre foi e ainda é o mesmo povo, de forma que ao tempo em que o estado foi expropriando, as igrejas foram se apropriando dos bens expropriados e constituindo uma potente estrutura paralela ao estado. Tanto é que, hoje, todas as igrejas cristãs estão dotadas de megas patrimônios como hospitais, colégios, universidades, meios de comunicações, instituições financeiras etc… Então… considerando essas e tantas outras questões… Cabe a nós, nas condições de povos Afros com todas nossas diversidades… confluirmos em nossos territórios e reeditarmos nossos modos de viver e fazer, a partir de nossas trajetórias contracolonialistas, guiadas por nossos saberes ancestrais!
E assim, ao invés de termos direitos a políticas públicas… Teremos condições e políticas próprias.
AQUILOMBAR-SE SEMPRE!
Comunidade Saco Curtume, 04 / 05 /2019