ARTE DA SEVIROLOGIA NOS TERRITÓRIOS DE CONFLITOS

Por Cleiton Ferreira – Fofão (Comunidade Cultural Quilombaque; Articulador Usina de Valores SP)

Para falar de capacidade e potencialidade na periferia é necessário antes, voltar ao passado e entender os processos de transformações com vistas no desenvolvimento que ocorreram não só nesses lugares, mas, no Brasil. Processos inspirados num modelo de industrialização e urbanização, especialmente na região sudeste, onde as ofertas de trabalhos para a construção da metrópole, desencadearam a migração de muitas pessoas vindas em grande parte do norte e nordeste, em busca de uma mudança de vida e de experimentar, talvez, o sonho de um BEM VIVER.

Mais do que conceito, o Bem Viver unifica vivências. O saber conviver com a Mãe Terra, um dos grandes ensinamentos transmitidos pelas comunidades indígenas, nutre-se de seus valores sagrados: o amor, o respeito e o cuidado que são repassados através de experiências e sobretudo de suas múltiplas práticas. Entretanto, o que vemos há tempos, é um ataque aos saberes e construções coletivas dos povos originários e comunidades periféricas. “O conceito de Bem Viver está na contramão de um modelo de desenvolvimento que considera a terra e a natureza apenas como insumos para a produção de mercadorias de rápido consumo e, mais rápido ainda, descarte” (Bonin, 2015). É neste contexto que se expande o processo de moradia nas áreas mais distantes, principalmente aqui na cidade de São Paulo, acomodando de forma injusta e precária toda essa mão de obra barata de pessoas que queriam suas vidas transformadas. Porém, com as dificuldades de sobrevivência que eram tantas, foi possível identificar uma nova arte produzida nas periferias, que resistem e (re)formulam tecnologias, inovações e culturas a partir de uma linguagem de resistência – A SEVIROLOGIA!

Ancorados nos pressupostos e fundamentos da visão sistêmica, foi criado uma metodologia multidimensional para diagnosticar, planejar e agir sobre a realidade, produzindo conhecimento para aprenderem de modo processual e permanente, ou seja, se você tem você faz, se você não tem você faz do mesmo jeito, VOCÊ SE VIRA!

É esta arte que faz tantas pessoas enfrentarem e vencerem as mazelas da vida. Através da união e firmeza permanente entre moradores que juntaram força para assegurar e garantir um dos direitos básicos da vida humana, a moradia. Esse pressuposto despertou a união das pessoas na busca por compra de lotes de terrenos, para saírem do aluguel, e, através de mutirões, que inicialmente eram grandes empreitadas coletivas, tais como: construir poços de uso coletivos, canalizar bicas em encostas de morros, encher lajes e puxar iluminação clandestina, trabalharam arduamente construindo seus puxadinhos para acomodarem suas famílias e formaram assim, grandes comunidades.

Parte essencial dessa construção, foram as igrejas Católicas, que disseminaram a Teologia da Libertação através das CEB’s (Comunidades Eclesiais de Base) e que teve papel efetivo na defesa de garantia de direitos, somando força a movimentos sociais e comunidades de terreiros de matrizes africanas, compondo movimentos de enfrentamentos a um regime militar cruel, que perdurou por mais de duas décadas, deixando uma enorme cicatriz no Brasil, e, sobretudo em nosso território, localizado na região Noroeste da cidade de São Paulo, com a vala comum de Perus. 

A periferia foi condenada a fome e a miséria, desemprego em alta, julgada como o lugar do descaso, do abandono e da violência. Vendida pelas instituições e as mídias perversas que produzem até os dias atuais, desinformação e sentimento de desmembramento e negação para essa população, em especial a população negra, e que, ainda hoje é maioria nesses territórios que se constituem como uma outra cidade fora da existente no centro. As lutas dos movimentos sociais que fizeram frentes na garantia de direitos coletivos, deixaram uma herança muito forte de unificação assumida pelos jovens periféricos que, neste contexto, traz à tona a subjetividade do sujeito periférico defendido por Tiaraju Pablo (2013).

Esses jovens, herdeiros de uma cidade construída através dos muitos esforços de seus pais e avós, não tiveram garantidos os direitos a essa própria cidade. Dessa subjetividade adotada, surgem pela arte e cultura, as suas reivindicações. O movimento Hip Hop permitiu que a juventude periférica desenvolvesse consciência para se apropriar de ferramentas de mobilização e reintegração social, dando voz a uma realidade até então implícita.

Coletivos começam a se organizar e a ocupar espaços como forma de protesto. A arte, a cultura e a nossa religião nos permitem reencontrar com nossas raízes negras, indígenas, quilombolas e nordestinas que ficaram veladas, que era tida como privilégio para a apropriação ao gosto das classes dominantes. Mas agora é diferente! Uma nova concepção estética começa a ser imprimida no fazer artístico cultural. Artistas militantes se espalham nas periferias não só como consumidores, mas também como criadores de ações tanto culturais, quanto políticas, na luta pelos direitos sociais e direito à cidade.

Neste contexto, são (re)apropriados e ressignificados, os ativos e potenciais locais que sempre foram negados para os seus antepassados. Estes jovens decidem ficar e mudar a periferia, a partir de transformações herdadas, pela solidariedade das lutas já travadas nesses territórios.  Em questão de memória, a região Noroeste da cidade de São Paulo, por exemplo, tem muitas resistências a serem lembradas e exaltadas: lutas seculares dos povos indígenas; a resistências de africanos escravizados na busca do ouro; a organização de umas das maiores greves que já se teve notícia na história operária, a luta dos Queixadas. Experiências e ideários vivos, que influenciaram e influenciam até os dias atuais gerações e gerações. Mas eis a questão, como restaurar e transformar essa memória em luta, em indutores potencializadores de futuros? É a visão sistêmica que nos permite transver, enxergar e identificar numa realidade inóspita, potenciais ativos.


A PÍLULA QUE TE ADOECEU

Por Priscila França (Educadora Usina de Valores) 

Audre Lorde afirmou que cuidar de si mesma era um “ato de guerra política”. O Bem Viver passou a ser um movimento social e político deixando de representar somente a  harmonia entre pessoas e natureza. 

O processo de colonização construído por meio de sequestros e escravização dos povos indígenas e africanos, retirados dos seios da Mãe Terra, trouxe uma sequência de violências, violações e ataques a dignidade até o dia de hoje. É como nos diz GOG em sua música “A CARTA DA MÃE ÁFRICA”:

(Mesmo separado de ti pelo Atlântico
Minha trilha são seus românticos cânticos
Mãe! Me imagino arrancado dos seus braços
Que não me viu nascer, nem meus primeiros passos
O esboço! É o que tenho na mente do teu rosto
Por aqui de ti falam muito pouco
E penso… Qual foi o erro cometido?
Por que fizeram com a gente isso?
O plano fica claro… É o nosso sumiço).

Práticas que refletem a forma pela qual a civilização europeia se relacionava com a terra e com o trabalho. Os portugueses chegaram com seus costumes e suas crenças, acreditando que sua cultura, seria “a cultura universal”.

Falar da mãe Terra é  ter latente o gestar, o nascer, o morrer, o cuidar e cultivar os elementos da natureza. Temos ativado de forma coletiva ou individual, os saberes e práticas de comunidades periféricas e tradicionais, para o enfrentamento das adversidades de uma nova sociedade escravocrata. Devemos lutar todos os dias para que as nossas práticas de bem viver e auto cuidado não sejam apagadas.

A perseguição e demonização é constante, falam de bem viver, porém não sabem amar aquela que todos os dias lhes provê o alimento e o remédio para as suas curas, aquela que mata a sede, aquela que aquece: “A NOSSA MÃE TERRA”. Ela que precisa ser alimentada e cuidada também. Para nós, “BEM VIVER” é estar em sintonia com a TERRA, afinal, nela tudo começa e tudo termina.


A ARTE DE SE COMUNICAR

Rachel Daniel (Articuladora Evangélica) 

As comunidades periféricas foram construídas a partir da coletividade e de processos modelos de descentralização do poder. Exemplo disso é a comunicação periférica, uma rede potente e “fora do controle”; uma estrutura que tende a reduzir os efeitos dos centros de poder tradicionais e que age em prol do cuidado e da vida dos seus. Essas redes que se conectam por becos, vielas e conjugados através das tecnologias e inovações de um povo que no resgate da ancestralidade e, no cultivo das tradições de cuidados, têm reafirmado e continuado a construção de teias comunicacionais e de saberes coletivos para o enfrentamento em busca do bem viver.

A arte periférica de se comunicar e conectar é herança dessas comunidades que se construíram através de redes. Por isso, que a cada dia, com o avanço dos acessos aos meios de comunicação em massa, as favelas e periferias têm se conectado de forma ágil – territorial e digitalmente – com a centralidade das memórias dos corpos que pertencem a essas teias, sempre reinventado as mesmas. Dessa forma, a narrativa tem sido tomada, reinventada e protagonizada para disseminar saberes, garantir a vida através das trocas e das vivências pelo resgate permanente da memória.

Esses processos de comunicação e disseminação das próprias narrativas têm conectado quebradas, favelas e periferias de todo o Brasil como forma de garantia de direitos e de preservação territorial. Além, da produção de conhecimento como forma de resistência às investidas de violência, apropriação e morte que lhes são impostas. Assim, a tecnologia, a inovação e o protagonismo – a arte da sevirologia, que conecta e comunica – têm sido desde muito, um caminho possível para o bem viver!

Referências:

BONIN, Iara Tatiana. O Bem viver indígena e o futuro da humanidade. Porantim: Encarte Pedagógico X; dezembro, 2015. Disponível em:

<http://www.cimi.org.br/pub/Porantim/2015/Encarte_Porantim381_dez2016.pdf>. Acesso em: 05.2020.

D’Andrea, Tiaraju Pablo. A Formação do Sujeito Periférico: Cultura e Política na Periferia de São Paulo. Tese de Doutorado. São Paulo: Sociologia. Universidade de São Paulo, 2013.

GONZALEZ, Lélia. A democracia racial: uma militância. Entrevista à Revista Sociedade de Estudos e Atividades Filosóficos (SEAF) em 1985, republicada em UAPÊ Revista de cultura n.º 2.

RAIMUNDO, Sílvia Lopes; SOUSA NETO, Manoel Fernandes de. Território, cultura e política: movimento cultural das periferias, resistência e cidade desejada. 2017.Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017. Disponível em: < http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8136/tde- 17042017-104001/ >. Acesso em: 05.2020.

SANTOS, Milton. O país distorcido: o Brasil, a globalização e a cidadania. In: Santos, Milton; RIBEIRO, Wagner Costa. (Orgs.). Ensaio de Carlos Walter Porto Gonçalves. São Paulo: Publifolha, 2002.

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