As cenas só se repetem
Por Maria Janielly e Jéssica Lopes
Quando se fala de racismo religioso, minha mente traz um monte de lembranças tristes. Só quem é de asé sabe o que estar de preceito na rua e cruzar com um fundamentalista religioso no caminho. Mas antes de falar das minhas experiências, vou falar historicamente das vivências dos nossos ancestrais. Imagine ser sequestrado, ser tirado da sua família, da sua aldeia, das suas memórias afetivas e colocado num navio, um navio com mais de 1000 pessoas sendo tratados como qualquer coisa, como qualquer coisa mesmo. E não esqueça das correntes e das torturas. Agora imagine chegando numa terra que não é sua, com uma linguagem que também não é sua, sem alimentação, sem um lugar para ao menos chorar. Eu sei que a gente foi pra bem longe, mas para falar de qualquer que seja o racismo precisamos lembrar de tudo, tudo vai ficar bem escuro na nossa mente e nada ficará velado. Agora vamos voltar para nossa lembrança coletiva para chegarmos juntas ao nosso ponto de vista. Imagine querer fazer suas preces e ser proibido, isso mesmo, proibido, porque para os cristãos outra religião que não fosse a deles era [é] coisa do “demônio”, “demônio” esse que nem existe na nossa religião. Todos os negros que fossem encontrados praticando qualquer ritual que não remetesse ao cristianismo, deveriam e foram torturados até a morte. Agora imagine ser obrigado a rezar terço, ler bíblia, olhar santos de outra religião e fazer daquilo sua fé, mesmo que não fosse. A catequese foi obrigatória, mesmo sendo dito, por líderes religiosos, que os negros não tinham alma e que não teriam salvação. Muito contraditório, já que os negros eram proibidos de entrarem nas suas igrejas. Lembrando que isso aconteceu há mais de 300 anos e, recordar disso tudo é como se o passado fosse agora. Estamos em 2019 e a cena só se repete. Só nesse primeiro bimestre os casos de racismo religioso no Brasil subiram mais de 57%. Precisamos deixar bem escuro que isso não é apenas intolerância religiosa, são religiões de matriz africana que sofrem com esses ataques. O candomblé, a umbanda, a jurema são as religiões que estão sendo os alvos. Vocês nunca vão ver judeus, protestantes ou budistas indo numa delegacia prestar queixa porque seus templos foram destruídos ou porque levaram pedradas na rua por vestirem branco. SER NEGRO, SER DE NEGRO, REMETER A NEGRO sempre causa isso. Tudo que recordamos, lá no começo de nossa conversa, se entrelaça com o que acontece hoje e não tem como dizer que se trata apenas de uma intolerância, quando, na verdade, sempre foi e é racismo.
Poderíamos passar horas conversando sobre como tudo que é de negro é demonizado, horas falando de como tudo é velado, de como a escravatura atinge até hoje.
Só de imaginar o que minhas ancestrais passaram para que hoje eu pudesse estar escrevendo isso, meus olhos marejam. Dói saber que se hoje eu tivesse a oportunidade de encontrar com elas no Orum, eu não teria muitas novidades de avanços por aqui. Fomos tiradas de nossa terra, fomos obrigadas a construir essas terras e mesmo se passando 300 e poucos anos as cicatrizes ainda não se fecharam. Não fomos reconhecidos, não somos reconhecidos, continuamos sendo os alvos, antes chicotadas e hoje as balas. Nossos corpos não vão mais para os troncos em praças públicas, mas o exército de cristo invade nossos terreiros e o nosso sagrado, continuamos sendo demonizados (lembrando que na nossa religião o demônio nem existe), o capitão do mato, hoje, leva nossos atabaques afirmando que estamos desobedecendo a lei do silencio
Estamos em 2019, e as cenas só se repetem.
Eu poderia citar cada uma das leis que foram estabalecidas para extinção do racismo, para a laicidade do nosso pais, para o direito de exercer o ensino superior, para não sermos assassinados há cada 23 minutos num pais onde 64% da sua população é negro, a higienização nazista continua.
Isso está quase virando um desabafo. E é. É que já tenho 30 anos, sou mãe preta, candomblecista e juremeira. O racismo me atinge em todas as suas esferas, são cicatrizes que não cicatrizam nunca.
Imagina, sexta fun fun, de branco, torço, volta no pescoço, menina de 1 ano e 8 meses no braço, a policia te para. Daquele jeito bem delicado. Te baculeja e baculeja tua filha e ainda diz que você vai queimar no fogo do inferno, que só Jesus salva!
Eu poderia falar de todas as leis que me cobriria naquele momento, poderia ir na corregedoria, poderia prestar queixa contra racismo, violação de menor. Eu poderia, eu sei, mas o racismo nos cala, ele atinge o que mais usamos, e a única coisa que nos sobra se formos lembrar de todas as nossas historias são nossas preces, nossas músicas, a nossa religião que precisa da nossa voz pra tudo.
O racismo invade tudo que é nosso, invade nossa alma, nossa auto estima, invade nossa fé a ponto de duvidarmos de nossa capacidade.
Minha ancestralidade é o que me dá força hoje, a mim e a quem é de asé. Poder ouvir o som do atabaque, poder sentir Òsún, poder falar que sou candomblecista, mesmo que isso cause olhares, desemprego, perca de amizades e todo o resto, é o que me faz estar aqui. Quando nascemos preta passamos toda a vida tentando nos encaixar e sermos aceitas, passamos anos tentando acreditar que somos de religião cristã também para não sermos vistas como do demônio por ser de asé (ainda existem pessoas de religião de matriz africana que também tem o seguimento católico), passamos anos sendo a mucama da amiga branca chata para sermos aceitas em lugares que nunca caberia um rio.
Hoje o meu dever enquanto mulher preta, mãe preta, candomblecista preta, juremeira preta, casada com uma mulher preta, integrante de um coletivo de mulheres pretas é honrar minha ancestralidade e dizer o que sou e porque sou.
O racismo aniquila nossa existência, sempre. Precisamos nos fazer presentes, de voz, corpo e alma, é necessário deixarmos escuro o que somos e como queremos, é necessário dizer ao universo que somos de asé, que somos candomblecistas, que somos umbadistas, que somos juremeiros, que Esú é o nosso mensageiro.
É de extrema importância retornar ao quilombo, não para ficarmos escondidos, mas para que possamos buscar estratégias para resgatar os nossos.