“Cuidar dos nossos não pode ser menos importante do que ir para um protesto”, diz Lana de Souza
O sonho de Lana de Souza, 28, articuladora do projeto Usina de Valores no Rio de Janeiro, não era ser jornalista. No início da adolescência ela ainda não pensava no que ser quando crescer. Mas, aos 12 anos, teve que fazer essa decisão para uma atividade escolar. Então, ela pediu para seu colega de classe desenhá-la ao lado de uma câmera e, naquele momento, achou que poderia ser a próxima Glória Maria.
Seu primeiro contato com a comunicação foi participando do projeto Parceiros RJ, lançado em março de 2011 pela Globo. A proposta era que jovens de diferentes regiões da cidade contassem histórias ou fizessem denúncias relacionadas aos seus territórios. Lana fez parte da primeira turma e foi responsável por reportar notícias do Complexo do Alemão, localizado na região norte do Rio de Janeiro.
Durante seu tempo de atuação foram 45 matérias produzidas em parceria com Thiago Ventura, também morador. A partir dessa experiência ela descobriu qual era uma das suas missões como jornalista. Enquanto Thiago se identificava mais com a denúncia de irregularidades pelo bairro, ela se dedicava a contar a história de personagens como a Dona Adriana, que vende empadinhas nas ruas do Rio, ou do coletivo Foto Clube Alemão, que faz registros fotográficos pelo Complexo.
“Nunca me fez bem ficar falando só de problemas. E a gente ser noticiado sempre por conta dos problemas, principalmente relacionado a segurança pública, também não é bom. Isso nunca foi uma parada que me atraiu, sabe? Sempre quis falar de outros rolês, quis contar histórias como a da Dona Zica, que é um ícone, torcedora fanática do Flamengo. Quis contar a história de pessoas e projeto, sentia que essa era a minha função”, explicou Lana.
Foi nas andadas pelo bairro, nas conversas com moradoras e moradores que ela aprendeu como criar conteúdos que dialogassem com o território. “O alemão é uma favela que tem quase 200 mil moradores. Difícil fazer essa relação, colocar esse pertencimento nas falas, nas sonoras, nas imagens e tudo mais. Então ali foi quando eu comecei a apurar o meu olhar de que fazer comunicação era outra parada, não era ser a Glória Maria”.
A faculdade veio depois, quando ela tinha por volta de 23 anos, em 2013. Foi aprovada na Faculdades Integradas Hélio Alonso (FACHA) com uma bolsa integral. Logo na primeira atividade, a professora pediu para que cada aluno escrevesse um lide sobre seu bairro. “E aí eu me peguei tendo que decidir se eu ia falar do Complexo do Alemão e ficar conhecida durante 4 anos como a “mina que mora na favela” ou se eu ia falar de Ramos, Olaria, Bonsucesso, Penha, que são bairros próximos”.
Lana decidiu por falar do Alemão e tornou-se a ativista da turma. Era para ela que todo mundo olhava quando o assunto era direitos humanos, favela e questões raciais. Mas também tomou cuidado para não a limitarem a esses temas. “Foram quatro anos em que eu fiz muitos conteúdos sobre o Complexo, mas também consegui falar sobre futebol, comida japonesa, cerveja. Mas as pessoas me reconheciam como sendo “a menina do Alemão”.
E, dentro do Complexo do Alemão, ela continuava envolvida com diferentes movimentos. No final de 2013, após fortes chuvas deixarem centenas de pessoas desalojadas no Rio de Janeiro, um grupo de moradores se organizou para oferecer um suporte às famílias atingidas na região. Foi deste núcleo de pessoas que nasceu o coletivo Papo Reto, que atua com comunicação e jornalismo.
De 2014 para cá o trabalho que eles têm desenvolvido se destacou. Um dos principais motivos da visibilidade é o uso de ferramentas digitais e de vídeos para denunciar a violência policial no território.
Curiosamente, abordar segurança pública não era o objetivo central do coletivo. Lana continuava sendo a pessoa que preferia contar histórias de vida do que de morte, mas assim como ela disse na entrevista, essa não era uma escolha.
“A pauta da violência sempre atravessou todas as outras pautas que a gente pensava. A gente começou a fazer algumas ideias de entrevistas, colocamos algumas coisas no canal do Youtube, mas a pauta da violência estava sempre batendo na porta e não adiantava não abrir a porta para isso, porque o assunto nem batia na porta mais, simplesmente entrava”, contou.
Após o assassinado de Marielle Franco, que impactou todo o Brasil, mas ainda mais militantes dos direitos humanos no Rio, Lana relatou que tem pensado ainda mais sobre a importância do autocuidado. Dois dias após o ato “Amanhecer por Marielle e Anderson”, que aconteceu em 14 de abril em diferentes partes do mundo, ela se deparou com um mural que fizeram com o rosto da então vereadora da cidade totalmente rasgado. Ela estava voltando da hora do almoço com um amigo de trabalho quando viu e, imediatamente, emudeceu.
“O rosto da Mari já não existia mais na imagem. Ver o quanto a bagagem que a imagem dela representa incomoda muita gente é dolorido E é difícil pensar que a gente tem incomodando gente grande, que o que a gente faz é motivo de ódio para algumas pessoas”.
Por este e outros motivos, a articuladora escolheu o valor Bem-Viver para definir o ano de 2018, focando na necessidade do autocuidado.
“Se ouvir e se entender é tão importante quanto ir para um ato, levantar uma bandeira e gritar palavras de ordem, sabe? Eu acho que tem o mesmo peso, a mesma importância. Porque se a gente não faz um, não dá para fazer o outro. Ou faremos só por um tempo e vai chegar uma hora que não conseguiremos fazer nenhum dos dois”, ressaltou.
Pouco tempo antes de concluir a entrevista, Lana interrompeu sua fala e disse: “Opa, acabamos de ouvir uns tiros aqui, hein”. Após um período de silêncio entre entrevistadora e entrevistada, Lana continuou: “sabe quando eu disse que a pauta da violência atravessa todas as outras pautas? Então…”.
Leia a entrevista na íntegra.
UV: Como você se aproximou da pauta de direitos humanos?
Lana de Souza: Aqui no Alemão temos pessoas e uma instituição que a gente fala muito, que é o Raízes em Movimento, sou muito grata por esse pessoal estar perto do Usina. Eles são uma grande referência para o território e foi ali no Raízes que comecei a ouvir sobre direitos humanos. E era difícil entender algumas coisas, porque na prática as paradas não funcionavam, no dia a dia era só porrada. E eu me perguntava: o que que é isso, do que a gente está falando? Foi aí que comecei a me relacionar com esse assunto, eu tinha entre 20 e 22 anos. Para mim foi muito diferente porque tem uma galera que começa nessa parada de direitos humanos pela dor, né? Por uma perda muito forte que aconteceu na família, algum trauma. E comigo não foi assim.
UV: E essa discussão sobre valores já era algo habitual ou foi algo novo para você?
Lana de Souza: Eu venho de uma vivência que é muito aquela coisa dos “bons costumes”. E aí o projeto traz essa visão de valores que fazem a diferença na nossa realidade, que fazem sentido para a gente, que dialogam com a nossa prática, não são valores teóricos. Existe uma explicação dos conceitos baseados na nossa prática do dia a dia. Eu nunca me peguei pensando nessa coisa dos valores, principalmente da forma como a gente traz no Usinas. Mas de alguma maneira eles sempre estiveram aqui.
UV: O coletivo Papo Reto já nasceu com a intenção de abordar segurança pública?
Lana de Souza: Não tínhamos um desejo ou proposta de falar de segurança pública. Mas na primeira semana a gente teve que anunciar a morte de uma senhora por conta de um tiroteio. Então a pauta da violência sempre atravessou todas as outras pautas que a gente pensava. Começamos a fazer algumas entrevistas, até temos algumas coisas no canal do Youtube, mas a pauta da violência estava sempre batendo na porta e não adiantava não abrir, porque o assunto nem batia mais, simplesmente entrava.
UV: É como se não tivesse tempo para leveza?
Lana de Souza: Sim, é sempre muito duro, é porrada o tempo todo. Sinto que as porradas são ainda mais fortes, porque, além de ter a força do próprio fato, que é a violência, tem uma questão extra que é o impedimento de propor outras pautas. Então a porrada é muito forte. Eu sempre sofri muito com isso, era difícil tentar mostrar outras coisas. Sai do Papo Reto por um período, fiquei um mês fora do coletivo. Tipo: “não dá pra mim”. Mas no mês seguinte eu voltei. Abordar segurança pública no Complexo do Alemão, no contexto do RJ, ainda mais com a intervenção, tem sido ainda mais difícil. Mas a gente não desiste, acreditamos que é importante continuar.
UV: Dos valores que a gente trabalha no projeto, qual te pega mais?
Lana de Souza: Enquanto ser humano, o que mais me puxa, o que mais me faz pulsar, é o valor “Escuta Ativa”. Acho que pelo meu histórico. De querer ouvir as pessoas, entender suas histórias, ver sentido no que a pessoa está dizendo e querer entender, sabe? Querer refletir a fala do outro, tentar entender porque a pessoa está trazendo aquela fala naquele momento, isso sempre me atraiu muito. Então eu acho que a Lana de 28 anos seja Escuta Ativa, mas eu também acho que a Lana de 2018 é o Bem-Viver.
UV: Com a atual cenário no Rio e no Brasil, como é ser uma militante e precisar pensar no Bem-Viver ao mesmo tempo?
Lana de Souza: Sempre penso que minha missão é cuidar das pessoas, não use isso como Marcelo Crivella usa (risos). Eu sempre tive um pouco essa relação com os meus amigos, de ser essa pessoa que pergunta “o que você está sentindo, o que você está pensando, você está bem?”. Escutei em uma novela que quando a boca cala, o corpo fala, e quando a boca fala, o corpo sara. E eu acredito muito nessa parada. Sempre tentei ouvir muitas pessoas, nessa missão de não querer que as pessoas adoecessem por não falarem, mas não fiz isso comigo, né? Bom, isso é outra conversa. Mas eu acho que de uns dois anos para cá tem uma galera falando muito que a gente precisa se cuidar e pensar em nosso bem estar para continuar forte no que fazemos, só que a gente sempre deixa isso em segundo plano ou até em último. Mas chegamos em um momento em que não dá mais para ser assim.
UV: O Assassinato de Marielle contribuiu para o tema “autocuidado” ganhar mais força?
Lana de Souza: Com certeza, a Mari foi assassinada e, de lá para cá, o que a gente mais tem visto é a nossa galera, principalmente as mulheres pretas, falando: “caraca, a gente tem que se cuidar”. Sabe? O nosso corpo precisa se cuidar, a nossa mente precisa se cuidar. Uma galera ficou com medo de continuar, uma galera repensou se fazia sentido seguir lutando por direitos pelo fato da Mari ter sido assassinada e pelo o que ela representava. Então eu acho que a gente não está mais no momento de ficar dizendo: “ah, depois eu penso nisso”. A jornalista Flávia Oliveira escreveu um texto há duas semanas falando sobre o autocuidado como um ato político e sobre como isso é importante para a nossa atuação como ativista. Não dá para gente achar que cuidar dos nossos é menos importante do que ir para um protesto, por exemplo. É tão importante quanto. Se ouvir e se entender é tão importante quanto ir para um ato, levantar uma bandeira e gritar palavras de ordem, sabe? Eu acho que tem o mesmo peso, a mesma importância. Porque se a gente não faz um, não dá para fazer o outro. Ou faremos só por um tempo e vai chegar uma hora que não conseguiremos fazer nenhum dos dois.
UV: E você acha discutir valores neste momento é uma boa forma de falar sobre direitos humanos?
Lana de Souza: Eu acho, é uma forma de falar o quanto é importante refletir sobre direitos humanos, sobre o quanto é importante disseminar esses valores no nosso dia a dia, sobre como esses valores estão inseridos no nosso dia a dia. Mais do que falar sobre sobre valores é falar de como eles são reais, sabe? Temos uma intervenção no Rio e agora? Como a gente se organiza para dar conta dessa parada? Como a gente se organiza para que mais dos nossos não sejam mortos? Depois do assassinato de Mari acho que deu um choque de realidade na galera, tanto numa questão de segurança – não numa coisa paranoica, mas o sentido de adotar práticas de segurança no dia a dia. Precisamos entender que o que a gente tem falado incomoda muita gente.
UV: Pensando no Rio, você acha que esse incômodo, essa tensão acontece também entre quem mora no asfalto e na favela?
Lana de Souza: É engraçado. Eu sou a pessoa que precisa sair da favela e viver fisicamente no centro, preciso conviver com pessoas na zona sul. Estou o tempo todo tentando entender o outro. Mas é difícil quando o outro não está disposto a sair da sua zona de conforto. Então não acho que exista uma disputa entre os dois lados, acho que existe uma falta de vivência. Nós estamos sempre nesse rolê de sair da favela e ir fazer algum corre fora, de conhecer pessoas que não são da favela e se relacionar tranquilamente. A gente sabe se relacionar com a galera que é de classe média alta, a gente sabe. O que eu sinto é que a maioria dessa galera não está disposta a se relacionar com quem é da periferia. Eu estava conversando com um amigo do trabalho e, quando a gente começou a conversar, ele disse que é muito fácil viver na zona sul. Ele nunca precisou sair do bairro dele para nada, só pra viajar. Então ele não vive isso, ele não sabe, não precisa ir até lá (na favela). E eu entendi o que ele quis dizer, é um outro campo de relação com a cidade.
UV: Você acha que vivenciar o outro lado da cidade é uma forma de transformar nossos valores?
Lana de Souza: Olha, acho que não de transformar. Acho que é potencializar o quanto você acredita nos seus valores e ampliar a reflexão para quem está na outra ponta. É uma forma de chamar as pessoas na responsabilidade do que elas estão fazendo. Porque é irresponsável que a galera que tem vários privilégios não se permita conhecer outras realidades. Acho isso muito irresponsável. É irresponsável pela realidade que a gente vive no Rio de Janeiro, muito irresponsável pela forma que as pessoas recebem conteúdo da mídia e sentem-se saciadas com aquilo. Muito irresponsável que as pessoas não valorizem os meios de comunicação populares. Então, quando eu convivo com essas pessoas, valorizo ainda mais a minha realidade, valorizo ainda mais o que eu acredito. E, de alguma forma, acho que consigo provocar essa reflexão e fazer com que ampliem a visão sobre os valores da cidade. Porque ainda tem pessoas que fazem essa divisão entre favela e cidade. E a favela é a cidade. Se a gente precisa viver a cidade amplamente essa galera também precisa.
UV: E qual é a missão dos veículos independentes nessa missão
Lana de Souza: Acho que a nossa missão é produzir conteúdo que seja representativo para a nossa galera, não podemos focar apenas em disputar narrativa com a mídia tradicional. Temos que disputar, sim, mas também temos que produzir algo que faça sentido para a minha mãe, para o meu sobrinho. Quero que eles gostem de consumir o que fazemos. Então nossa missão é, além de produzir conteúdos como a grande imprensa, é produzir conteúdos que sejam pertencentes ao território e que dialoguem com a nossa realidade e os nossos desejos de comunicação. Gosto de programas de saúde, de moda, de estilo, porque não temos isso feito por pessoas da periferia? Tem a pauta da violência que atravessa a gente, mas a gente também precisa pensar nessa outra esfera. A gente tem um monte de matéria engavetada que não conseguimos colocar em prática, mas estes produtos também são importantes para a nossa realidade.