Defender a história de Vladimir Herzog é defender seus valores pela democracia

O Instituto Vladimir Herzog (IVH) nasceu para defender o legado e os valores exaltados por Vlado até a morte: a democracia, a liberdade de expressão e o respeito aos direitos humanos. Hoje é celebrado os 81 anos de seu nascimento, no mesmo ano em que também se comemora os 10 anos da criação do IVH e o 70° aniversário da Declaração Universal de Direitos Humanos (DUDH), marco histórico na luta pela dignidade humana.

O contexto atual do Brasil é de retrocessos e perdas de direitos fundamentais. Justamente por isso, neste ano tão importante, o Instituto se fortalece para continuar lutando e celebrando a vida de Vladimir Herzog.

Para que isso aconteça, um dos focos é investir em projetos de Educação em Direitos Humanos. Neste recorte, inclui-se o Respeitar é Preciso!, que tem ampliados suas dimensões e será implementado em novas cidades do Brasil. E o Usina de Valores,  lançado em março deste ano e atuante em três capitais do país com o objetivo de disputar valores essenciais para o combate ao discurso de ódio.

Quem foi Vladimir Herzog

Vladimir Herzog foi um jornalista, desejava ser um cineasta, mas, vitimado pela ditadura, tornou-se uma personagem icônica da História do Brasil e da construção da nossa democracia. Sua vida e sua trajetória profissional, fundamentos da existência e da ação do Instituto Vladimir Herzog, foram marcadas por permanente preocupação humanística, que se refletiu em suas realizações jornalísticas e cinematográficas e está para sempre simbolizada em sua frase: “Quando perdemos a capacidade de nos indignar com as atrocidades praticadas contra outros, perdemos também o direito de nos considerar seres humanos civilizados”.

O cruel assassinato

Vladimir Herzog, o Vlado, foi assassinado no dia 25 de outubro de 1975, sábado, num antigo prédio da rua Tomás Carvalhal, no Bairro do Paraíso, em São Paulo, onde funcionava o Destacamento de Operações de Informações (DOI), departamento do Centro de Operações de Defesa Interna, (CODI), órgão subordinado à Segunda Divisão de Exército, parte da organização hierárquica do Comando Militar do Sudeste, sediado na capital paulista. Então diretor de jornalismo da TV Cultura e responsável pelo telejornal “Hora da Notícia” o jornalista fora procurado na noite anterior em seu local de trabalho por dois agentes que pretendiam levá-lo para “prestar depoimento” sobre suas supostas ligações com o Partido Comunista Brasileiro, agremiação que funcionava na clandestinidade desde o golpe militar de 1964. Após uma tensa negociação, Vlado comprometeu-se a se apresentar espontaneamente na manhã seguinte.

hegou à sede DOI-CODI, às 8 horas, levado àquele endereço pelo jornalista Paulo Nunes, que cobria a área militar na redação da Cultura e dormira na casa do diretor da TV naquela noite para assegurar que ele se apresentaria na instalação militar logo cedo. Nunes foi dispensado na recepção e Vlado encaminhado para interrogatório. Foi então encapuzado, amarrado a uma cadeira, sufocado com amoníaco, submetido a espancamento e choques elétricos, conforme o manual ali praticado e seguindo a rotina a que foram submetidos centenas de outros presos políticos nos centros de tortura criados pela ditadura e financiados em boa parte por empresários que patrocinavam ações repressivas e de violação dos Direitos Humanos, como a Operação Bandeirante.

“Naquela cela solitária, com o ouvido na janelinha, eu podia ouvir os gritos: ‘Quem são os jornalistas? Quem são os jornalistas?’ Pelo tipo de grito, pelo tipo de porrada, sabia que estava sendo feito com alguém exatamente aquilo pelo que eu tinha passado “, recordou, em 1992, em depoimento ao jornal Unidade, do sindicato da categoria, o jornalista Sérgio Gomes, que estava preso no mesmo DOI-CODI em que Vlado se encontrava naquele dia. “Lá pela hora do almoço há uma azáfama, uma correria. Ele foi torturado durante toda a manhã e se dá o tal silêncio. A pessoa para de ser torturada e em seguida há uma azáfama, uma correria… A gente percebe que tem alguma coisa estranha acontecendo. Tinham acabado de matar o Vlado.”


A farsa do suicídio

Mas o assassinato brutal, por espancamento, não era o limite a que podiam chegar os feitores do regime ditatorial. Esquivar-se da responsabilidade pelo crime forjando uma inverossímil cena de suicídio seria o próximo passo dos torturadores. Com uma tira de pano, amarraram o corpo pelo pescoço à grade de uma janela e convocaram um perito do Instituto Médico Legal para fotografar a “prova” de que o preso dera fim à própria vida, em um surto de enlouquecido arrependimento por ter escrito uma confissão que aparecia rasgada, no chão, na imagem divulgada pelos órgãos de repressão. A cena da morte de Vlado, fotografada pelo perito do IML, foi representada pelo artista Elifas Andreato no quadro “25 de Outubro”.

Na pressa para montar esse circo macabro, ignoraram detalhes como o fato de Vlado ser mais alto do que a janela com grade onde supostamente enforcou-se e a rotina de encarceramento que tira dos presos qualquer instrumento com o qual se possam  enforcar, cintos e cadarços entre eles. Criaram, assim, uma mentira tão flagrante que a Sociedade Cemitério Israelita nem considerou a hipótese de enterrar o corpo na área reservada aos suicidas, como determina a prática religiosa. Mas, no Inquérito Policial Militar que viria a ser instaurado em razão da morte ocorrida em instalação oficial, o promotor Durval de Araújo – um defensor e protegido do regime – ainda sustentaria que o sepultamento aconteceu no setor de suicidas, recorrendo a depoimentos contraditórios e, mais que isso, se esforçaria para distorcer o que diziam vários depoentes. Por exemplo, a mãe de Vlado disse que sentiu que também queria morrer ao receber a notícia da perda do filho. E o promotor tentou registrar nos autos que ela “sentiu vontade de suicidar-se também”.

O promotor queria encerrar o assunto, mas a luta de sua esposa Clarice Herzog para esclarecer totalmente aqueles episódios viria a destruir, no futuro, seus argumentos, as distorções que enredava e a parcialidade de sua atuação.

 

A morte de Vlado e a história do Brasil

O assassinato de Vladimir Herzog se tornaria um desses raros episódios que marcam a História por muitos aspectos. Foi, naturalmente, uma tragédia para Clarice e para os filhos Ivo e André, bem como para centenas de amigos, milhares de jornalistas e milhões de brasileiros, violentamente privados da convivência, da camaradagem, da inteligência e do talento de um pai, amigo, companheiro, colega, profissional e cidadão que, aos 38 anos, teria ainda muito a contribuir para a história de cada um.

Mas foi também um momento que viria a impulsionar a luta pela redemocratização do país, a começar pelo ato ecumênico realizado na Catedral de São Paulo seis dias depois de sua morte, conduzido pelo cardeal D. Paulo Evaristo Arns, pelo rabino Henry Sobel e pelo pastor James Wright, no qual oito mil pessoas enfrentaram o medo e os cercos militares para dizer “basta” de viva voz. “Aquele foi um momento de união de forças a partir do qual ficou claro para o regime que a sociedade civil caminharia determinadamente para a reconstrução da democracia”, diz Audálio Dantas, então presidente do Sindicato dos Jornalistas e um dos articuladores daquela manifestação.

Entre as muitas teorias construídas para explicar por que os algozes do regime mataram Vlado, há duas que se destacam. Uma delas o empresário José Mindlin, na época secretário da Cultura do Estado de São Paulo e responsável pela contratação de Vlado pela TV Cultura, ouviu do então governador Paulo Egídio quando apresentou sua demissão do cargo, em razão do assassinato: “Você está liberado”, disse-lhe o governador, conforme Mindlin narraria anos depois. “Mas sua saída enfraquece a corrente de resistência contra a ala radical do Exército que comanda a repressão. Eles pegaram o Vlado para pegar você. Pegariam você para me pegar. E me pegariam para derrubar o presidente.”

Segundo essa tese, o general Ernesto Geisel, presidente que então imprimia a chamada “política de abertura lenta e gradual”, enfrentava uma rebelião promovida pelos militares da “linha dura”, que tentavam demonstrar a existência de infiltração comunista nos aparelhos do Estado para justificar a continuidade e a intensificação da violência  do regime de exceção. “Nós, que fomos presos naquele momento, éramos como o marisco, entre a dureza das pedras e a violência da maré”, comparou uma vez o jornalista Paulo Markun, um dos 12 profissionais de imprensa que estavam na carceragem do DOI-CODI naquele dia fatídico do assassinato de Vlado.

A outra teoria supõe que era Geisel, orientado por um ideólogo do regime, o general Golbery do Couto e Silva, quem deixava a direita à vontade para a prática clandestina da violência contra militantes da esquerda organizada, com o objetivo de tirá-los do cenário da futura redemocratização, via “abertura”. Ninguém sustenta, no entanto, que a morte de Herzog tenha sido premeditada. Ocorreu pela desmedida violência na atuação dos torturadores. E gerou consequências que alteraram o rumo da História do país.

 

Em busca da verdade

Clarice Herzog seria reconhecida, nos anos posteriores, como uma heroína, por sua determinação em buscar a responsabilização do Estado pela morte do marido, desde o primeiro momento após o assassinato. Em 1979, por corajosa decisão do juiz Márcio José de Morais em processo movido pela família Herzog, a Justiça brasileira condenou a União pelo assassinato de Vlado. Apenas em 2013, a família teve nas mãos uma nova certidão de óbito, na qual a morte foi registrada como resultado de “lesões e maus tratos” infligidos no “II Exército (DOI-CODI)” –  um eufemismo ainda para abuso, tortura, homicídio, mas mesmo assim significativo de uma enorme transformação política ocorrida no Brasil com o impulso das forças democráticas que não esmoreceram diante do poder fardado e da violência.

Os depoimentos de Sérgio, Markun e outros jornalistas presos no DOI-CODI naquela data – entre os quais Anthony de Christo, Rodolfo Konder, George Duque Estrada, Diléa Frate e Luiz Weis – seriam fundamentais no esclarecimento da farsa. Tecnicamente, a descrição registrada no novo atestado pode estar certa. Mas, política e socialmente, as razões da morte de Herzog, além da tortura, foram o ódio, a intolerância, o preconceito, a discriminação e todas as outras formas de violência que levam à existência de mártires. Na verdade, sua trajetória demonstrava a determinação, isso sim, de superar o risco de se tornar um mártir e vencer a tragédia de perseguição racista que vivera ainda na infância.

A infância e a juventude de Vlado

Vlado Herzog era seu nome verdadeiro. Vladimir foi o modo que escolheu assinar porque lhe parecia na juventude menos exótico aos ouvidos brasileiros, numa decisão que, ao longo dos anos, os que conquistavam sua intimidade revertiam, adotando o nome oficial como um apelido carinhoso. Nasceu em 27 de junho de 1937, na Iugoslávia, em Osijek, hoje a quarta maior cidade da Croácia, cortada pelo Rio Drava pouco antes de sua confluência com o Danúbio e próxima da fronteira com a Hungria. Zora, sua mãe, fora para a casa de seus pais, Ziga Wollner e Sirena Wolf, para dar à luz. Ela e Zigmund, pai de Vlado, viviam na verdade em Banja Luka, hoje uma grande cidade da Bósnia e Herzegovina.

A Segunda Guerra eclodiria dois anos depois, o país seria ocupado pelo Reich em 1941 e a perseguição aos judeus levaria Zigmund e Zora a buscar refúgio por algum tempo na Itália, primeiro em Fonzaso, nas montanhas Dolomitas, depois em Fermo, na costa do Adriático. Em Banja Luka, os Herzog tiveram a casa confiscada por oficiais nazistas e dela nem os brinquedos do menino puderam tirar. Durante a permanência na Itália, o garoto rapidamente aprendeu o idioma do país e falava com os soldados fascistas em lugar do pai, que se fingia de mudo porque não conseguira aprender o italiano.

Tinha nove anos quando, depois da ocupação da Itália pelas tropas aliadas, a família foi enviada para Santa Maria al Bagno, onde os refugiados de guerra, apátridas, deviam escolher um país para se fixar. Os Herzog escolheram o Brasil, onde Vlado se naturalizaria. Os avós maternos, Ziga e Sirena, foram executados em Auschwitz. Os paternos, Moritz Herzog e Gisela, morreram no campo de extermínio de Jasenovac, na Iugoslávia.

Zigmund e a família desembarcaram no Rio de Janeiro do navio Philippa e seguiram para São Paulo, onde ele viria a trabalhar na área de contabilidade em negócios de Leon Feffer, fundador da Suzano Papel e Celulose. Zora contribuía para o orçamento doméstico servindo refeições para quatro rapazes que sublocavam um quarto em sua primeira casa. Cozinhava numa espiriteira. Depois se tornou sócia de uma confecção.

Franzino e um tanto tímido, com orelhas de abano que só adulto viria a corrigir numa cirurgia plástica, o filho encaminhou-se desde cedo mais para o mundo dos livros do que para as atividades esportivas. A mãe se preocupava com o garoto, que se alimentava pouco e abastecia sua lancheira escolar de frutas, pedindo aos colegas que o incentivassem a comer.  “Ele tinha a saúde um pouco frágil e não gostava mesmo de comer”, recordou, para um documentário gravado pelo cineasta João Batista de Andrade, o arquiteto Ruy Ohtake, que por sete anos frequentou com Vlado as aulas no Colégio Estadual de São Paulo. “Era um rapaz muito sério, sempre com um livro debaixo do braço. Foi por causa dele que fui ler Dostoievsky.”

O início da vida professional

Num caminho natural para jovens intelectuais da década de 1950, Vlado foi cursar Filosofia na Universidade de São Paulo. Apaixonado por cinema, viajou com o amigo Maurice Capovilla para a Argentina, onde bateram à porta do Instituto de Cinematografia de Santa Fé, criado em 1956 por Fernando Birri , na Universidade Nacional do Litoral. Birri viria a tornar-se um grande amigo e chegou a se abrigar na casa de Vlado, em São Paulo, quando se exilou da Argentina, por problemas políticos.
Do envolvimento de Herzog com o cinema resultariam diversos trabalhos, entre eles o filme “Marimbás” (1963 ) – primeira fita brasileira a utilizar som direto – que realizou no Rio de Janeiro; a gerência de produção do curta-metragem “Subterrâneos do Futebol” (1965), de Capovilla; e o início do roteiro do filme “Doramundo”, que só viria a ser filmado depois de sua morte, pelo mesmo João Batista de Andrade, que o homenageou com um documentário.

“Vladimir acreditava no cinema como ferramenta de investigação e denúncia da realidade brasileira”, recorda João Batista, que realizou também diversas reportagens para o telejornal da Cultura no período em que Vlado dirigiu o jornalismo da emissora.

Sua carreira no jornalismo começou praticamente em paralelo ao trabalho com cinema, conforme recorda o jornalista Luiz Weis num longo e preciso depoimento escrito para o livro Vlado, retrato da morte de um homem e de uma época, organizado por Paulo Markun. Herzog e Weis, também colegas de colégio, estagiaram juntos no jornal O Estado de S. Paulo, em 1958 e foram admitidos na redação no ano seguinte, quando Vlado iniciou, simultaneamente, o curso universitário. Até então, ajudava a custear as próprias despesas trabalhando num banco em meio período.

O amigo, lembra Weis em seu texto, indignava-se com a realidade social e a corrupção brasileiras, mas não era um iniciado no mundo da política. O acontecimento que “faria estalar definitivamente o ceticismo com o qual Vlado se punha perante o mundo” seria, confome a narrativa, a vinda ao Brasil do pensador francês Jean-Paul Sartre, cuja visita o jovem repórter e estudante acompanhou detalhadamente. “Via Sartre, ele descobria o engajamento”, anotou Weis.

O caso Herzog

No último dia 24 de maio de 2017, a Corte Interamericana de Direitos Humanos analisou o caso sobre a morte do jornalista Vladimir Herzog. A audiência, que aconteceu em San José, na Costa Rica, avaliou a situação de impunidade em que se encontram a detenção arbitrária, a tortura e a morte de Herzog, ocorridas em 25 de outubro de 1975. Clarice Herzog, mulher de Vlado na época do assassinato e, atualmente, presidente do Instituto Vladimir Herzog, relatou os impactos sofridos em decorrência da obstrução ao acesso à verdade e da ausência de justiça, uma vez que não houve qualquer responsabilização.

Seu depoimento foi seguido do testemunho do Dr. Marlon Weichert, Procurador da República, que informou a Corte sobre sua atuação ao representar o caso solicitando investigação na Justiça Federal. Na sequência houve a declaração do perito Sérgio Suiama, também Procurador da República, que instruiu o tribunal sobre os obstáculos encontrados para a realização de justiça nos casos de graves violações de Direitos Humanos praticadas durante a ditadura militar brasileira.

Na última parte da audiência, o Centro pela Justiça e o Direito Internacional (Cejil), que representa a vítima e seus familiares, apresentou suas alegações orais, apresentando o contexto, os fatos, o direito violado e as reparações solicitadas no processo. Por fim o Estado brasileiro e seus representantes apresentaram suas alegações orais de defesa. Agora, a corte tem até sete meses para anunciar sua decisão.

Saiba tudo sobre o Caso Herzog neste link.

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