Intolerância religiosa contra povos de matriz africana no Brasil
Por Deise Gabriela Carmo de Souza
Quando os africanos foram sequestrados para o Brasil no século XVI tentaram, com muitas revoltas, subversão e resistência, viver a sua cultura. Sempre foram alvo de demonizações das sociedades locais que cultuavam a imagem de um deus branco, de traços finos e único, trazido pelos colonizadores portugueses para apagar a religião indígena que, segundo eles, não existia e, assim, o país tornou-se oficialmente católico. Depois de quase quatro séculos de um sistema escravocrata e da implantação dos estudos etnocêntricos nos espaços acadêmicos, apoiados pelas sociedades e seus governantes, o povo negro criou meios para que pudesse adorar seus deuses, os orixás, que se tornaram alvo de preconceitos e demonização, sendo seus adeptos muito perseguidos. Desde muito antes da abolição as pessoas religiosas do candomblé vêm sofrendo ataques nesse país insistente em manter vivos os estudos de homens brancos e ditos cristãos que afirmavam ser a religião dos africanos um atraso às culturas ocidentais e que viam na religião católica uma salvação para, principalmente os afrodescendentes, sofrerem um apagamento da religião de origem dos seus ancestrais. O resultado desses estudos ainda tão vivos no Brasil é constantes depredações aos terreiros, violências psicológica e física contra pessoas religiosas, ainda nos dias atuais, atrelados a um proselitismo que cerca o país desde que o homem branco aqui pisou, um proselitismo já não mais católico, mas de uma vertente protestante. Pessoas de denominações neopentecostais geralmente têm discursos fortes e intolerantes acerca das religiões de matriz africana e têm atraído tanto traficantes de drogas das comunidades periféricas que, outrora eram os fiéis protetores dos terreiros de candomblé dessas áreas e de suas mães e pais de santo, quanto os usuários que são cristãos não praticantes, aquelas pessoas que adotam os discursos dessas igrejas, mas não se convertem de fato, o que soa ainda mais perigoso para as pessoas que os cercam.
Com todos esses fatos violentos acontecendo como se estivéssemos ainda na modernidade, confrontando com a igreja pelo direito ao culto ancestral, há uma necessidade que cotidianamente se estende: que medidas mais severas sejam tomadas pelo Estado ainda tão omisso quanto a isso, apenas agindo diante das várias manifestações de solidariedade das pessoas que militam pelas causas das minorias ou quando algum órgão estadual é presidido por pessoas que são ativistas do movimento negro. Frente a isso fica a pergunta: quem está por trás dessas constantes cenas de violência de intolerância religiosa no Brasil, em suma, no Rio de Janeiro? Visto que em um ano de gestão, o prefeito da cidade e pastor, além do descaso com a diversidade religiosa e de aparelhar órgãos públicos com objetivo de não atender às entidades candomblecistas, fechou uma casa religiosa, a Serrinha do Jongo. Com estes casos já violentos, faz-se nítida a imagem de uma cidade que, em quatro anos, tentará sobreviver a uma gestão pentecostal ao passo que, historicamente, foi praticamente fundada por pessoas negras que cultuavam vários deuses.
Com a efervescência das teorias raciais no Brasil durante e pós-abolição, principalmente pelos estudos do Dr. Nina Rodrigues aqui na Bahia acerca das pessoas negras, todos os povos que não obedeciam ao padrão branco-cristão e sua cultura dita avançada eram considerados inferiores, pois os povos europeus estavam no centro de todas as formas de vida, poder e intelectualidade e, por isso, as pessoas negras que são adeptas ao candomblé e à umbanda continuam sendo vítimas de um sistema racista que age em suas várias esferas como forma de excluí-las com seus saberes acadêmicos e populares, suas religiões, como vem sendo corriqueiro no Brasil. Além de tantos homicídios físicos e culturais essas teorias foram também difusoras do epistemicídio que ainda hoje está em curso. Apesar dele ter feito o primeiro mapeamento das casas de candomblés da Bahia do final do século XIX, a sua real intenção do conhecimento sobre a religião africana era a busca pela cura daquele fenômeno, para ele, psíquico e tudo isso contribuiu para a perseguição a esses cultos religiosos na Bahia.
Recentemente uma onda de fascismo religioso vem assombrando o país e sendo destaque nas mídias, principalmente as mais acessadas: as redes sociais. O surgimento mais absurdo dentro dessa nova onda de apagamento da religião africana no Brasil é o aparecimento dos “traficantes de Cristo”, os cristãos traficantes das periferias, sobretudo, na cidade do Rio de Janeiro, a segunda cidade que concentrou o maior número de escravizados, mais favelas e mais adeptos do candomblé, atualmente sob a gestão do bispo Marcelo Crivella, da Igreja Universal do Reino de Deus. Casos já aconteciam isoladamente, porém, somente este ano houve uma série de acontecimentos de desrespeito aos direitos das pessoas do candomblé e da umbanda.
Comandantes do tráfico, que outrora até protegiam e respeitavam pais, mães, filhas e filhos de santo das comunidades, vêm sendo os autores das mais pesadas ações de violência contra os religiosos de matriz negra na “cidade maravilhosa”, sob ameaças de disparar tiros em meio a discursos de ódio provenientes de neodoutrinas cristãs, fazendo com que as próprias pessoas religiosas destruam seus santuários, seus terreiros com as próprias mãos, como uma forma de serem castigadas, uma forma de autopunição. Isso parece ser devastador para uma pessoa religiosa que tem amor à sua história e à sua religião, o que fica perceptível no semblante delas ao serem filmadas pelos seus próprios algozes e expostas nas redes. Foi o que aconteceu recentemente com uma yalorixá em Nova Iguaçu que foi obrigada, sob a mira de um revólver, a destruir o santuário do seu terreiro. Houve outro caso: um babalorixá foi obrigado a destruir seu terreiro, ameaçado sob a mira de um taco de beisebol, ao som de frases de cunho religioso e sob a afirmação de que o „mano‟ não queria macumba ali. Todos os casos foram registrados e publicados pelos próprios traficantes e em todos havia discurso cristão-fanático como “Quebra tudo, quebra tudo!” “Apaga as velas, porque o sangue de Jesus tem poder!” “Arrebenta as guias todas!” ”Todo o mal tem que ser desfeito, em nome de Jesus!”, “É só um diálogo que eu tô tendo com vocês, na próxima vez eu mato! Safadeza, pilantragem! “Primeiramente é Jesus”! Quando vocês forem bater cabeça aí na casinha do cachorro, vocês primeiro pedem licença a Jesus!“ “Eu sou da honra e glória de Jesus!” (*). Em outro caso, já não tão recente, uma criança de onze anos foi atacada com uma pedrada na cabeça por estar vestindo as indumentárias brancas de sua religião, também no Rio de Janeiro.
O país inteiro, agora mais do nunca, vai viver estes cenários com discursos de ódio religioso, depredações de templos e violências físicas partindo de quaisquer pessoas e/ou grupos que se disponibilizem a servir ao racismo religioso e aos interesses financeiros e políticos de representantes religiosos das igrejas, pois já se faz notório que essa motivação odiosa de pregação violenta e de condução coercitiva do remanejamento de pessoas e terreiros das comunidades periféricas seja de autoria de pessoas que seguem uma onda conservadora e de obscurantismo religioso. O Rio de Janeiro tem sido ultimamente o quadro mais violento de intolerância religiosa no país.
O Brasil é um país que apesar de laico constitucionalmente, tem bebido muito da fonte do protestantismo neopentecostal nas últimas décadas e vem crescendo especialmente nas áreas mais subdesenvolvidas onde líderes espirituais, os pastores, geralmente não têm nenhum tipo de preparação para conduzir leituras bíblicas, fazendo isso grosso modo, espalhando de forma viral a intolerância aos direitos das pessoas,
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(*) falas retiradas de notícias do Google.
gerando guerras entre grupos étnicos pelas diferenças religiosas, elucidando suas elucubrações carregadas de alegorias, cujas interpretações ficam cada vez mais distantes
das manifestações socioculturais atuais e dos direitos humanos e cada vez mais próximo das leis mosaicas, mostrando uma controvérsia entre serem cristãos ou adoradores de Moisés, pois de Jesus Cristo vê-se a olho nu que nada seguem. Milhares de violências de diversos tipos são aplicadas no Brasil por questões religiosas, porém as mais fatídicas são direcionadas às pessoas adeptas das religiões africanas e afrobrasileiras, sendo estas politeístas, como a exemplo do candomblé, que teve uma quantidade elevada de pessoas dizimadas e surradas no decorrer da história e hoje dizimadas através do desrespeito aos seus direitos sociais e culturais. A soberania do deus criado no Oriente está cada dia, desde os tempos antigos, mais assegurada e difundida, quanto mais se fazem leituras e interpretações equívocas ou nenhuma interpretação, sendo essa falta de assimilação um mal que, infelizmente, continuará a trazer problemas de intolerância religiosa e retirada de direito à liberdade religiosa em país, constitucionalmente laico e praticamente (des)governado pela bancada evangélica, onde pastores recrutam “fiéis” criminosos para combater religião politeísta e negra. Em tempos em que o próprio presidente do país é intolerante e desrespeitoso com as diversidades, toda rede de fortalecimento com efeitos reais será bem vinda para a saúde mental e liberdade religiosa de todos os povos não cristãos, bem como políticas efetivas e defesa dos Direitos Humanos.
Muito pertinente o texto!
Sou estudante do curso de Serviço Social na UNICAP ( Universidade Católica de Pernambuco),
e enquanto Ogan Alagbè, e acima de tudo candomblecista, estou construindo um trabalho de conclusão de curso onde abordarei a temática da intolerância religiosa para com os povos de terreiro, e o papel que o Assistente Social deve exercer diante disso.
Estou procurando textos para elucidar o trabalho e sinto-me totalmente representado por esse texto que acabo de ler, e gostaria de dizer que será de bastante serventia para a conclusão do trabalho! Meus parabéns e muito obrigado, e se tiverem mais textos e informações que possam compartilhar comigo a respeito da temática eu serei eternamente agradecido!
Forte abraço e Muito AXÉ pra todos e todas nós!