Mandela 100: inspiração por igualdade e dignidade que atravessa o tempo

A data de 18 de julho marca anualmente o Dia Internacional de Nelson Mandela, em 2018 o líder sul-africano completaria 100 anos de idade

Em 1918, nascia um dos maiores líderes políticos e sociais da história recente da humanidade. Rolihlahla Mandela, ou simplesmente Nelson ‘Madiba’ Mandela, nasceu no vilarejo de Mvezo, no distrito de Umtata, região sul-africana de Transkei, localizada no sudeste da África do Sul. Naquela época o país ainda vivia sob domínio britânico, sendo politicamente governado por uma minoria branca e rica. Nessa época, negros nativos detinham apenas 7% da posse do território, apesar de constituírem a maioria populacional.

Nos anos seguintes, a segregação racial majoritariamente informal evoluiu e foi institucionalizada, no que ficou conhecido como regime do Apartheid, comandado pelo Partido Nacional, a partir de 1948. É nesse contexto que Nelson Mandela surge como figura política na luta permanente contra a segregação entre raças e o racismo na África do Sul. Membro do Congresso Nacional Africano (CNA), desde 1942, o jovem ativista e o partido lutavam pelo fim da discriminação racial e por dignidade humana plena para os sul-africanos negros.

Sua trajetória de resistência alçou Mandela ao posto de principal figura política anti-apartheid no país. Apesar de ser reconhecido como um dos maiores pacifistas da modernidade, parte da trajetória de Mandela esteve ligada à luta armada: durante a década de 60, sobretudo após o banimento do CNA pelo governo sul-africano e o massacre de Sharpeville, em 1961. Na ocasião, 69 manifestantes negros foram mortos pela polícia. Ainda no mesmo período, fundou o Umkhonto we Sizwe, movimento que promovia ataques a prédios do governo segregacionista.

Nos anos seguintes, Madiba enfrentou diversas acusações nos tribunais. A primeira, em 1962, acusado e condenado a cinco anos de prisão por sair do país sem autorização e incentivar greves pelo território. A segunda vez, em 1964, por sabotagem e uma suposta conspiração para que a África do Sul fosse invadida por outros países. Sem escapatória, foi condenado à prisão perpétua. Permaneceu preso por 27 anos, sendo solto apenas em 1990.

Mesmo preso, Mandela resistiu como importante figura de articulação política anti-apartheid, principalmente com a ajuda de sua ex-esposa Winnie Mandela. Uma vez em liberdade, Madiba consolidou-se mais uma vez como liderança importante. Primeiramente no CNA, e, depois, como ganhado do Nobel da Paz e primeiro presidente sul-africano eleito democraticamente após o fim do regime de segregação racial.

Sua trajetória tornou-se referência mundial no combate às desigualdades, ao racismo e reverbera até hoje entre jovens e lideranças políticas no planeta. Mandela foi capaz de ressignificar valores sociais profundos na África do Sul. Sua postura sempre se pautou em ideais de dignidade humana plena, pelo engajamento político constante e pela escuta amplamente ativa de diferentes setores sociais, visando a inédita e recente coexistência pacífica entre negros e brancos em território sul-africano.

Na data que marca o centenário de Nelson Mandela, o Usina de Valores conversou com o pesquisador e teólogo Ronilso Pacheco para entender seu legado e sua influência na luta contra o racismo no mundo. Leia abaixo:

Usina de Valores: Qual é o seu sentimento em relação ao legado de Nelson Mandela?

Ronilso Pacheco: É uma mistura de ânimo e frustração. Ânimo porque é uma história extremamente motivadora pela resistência, pela perseverança, pela força. É uma história que se conecta muito com a luta do povo negro de uma maneira geral, no meio de crueldades tão intensas, seja na área pública, de estado ou politicamente. Então é um ânimo por mostrar que essa disposição e essa resistência existe e nos deixou como referência para termos para onde olhar. Mas também frustração pela maneira como grande parte deste legado é apagado. É apagado na prática, na própria África do Sul, mas também internacionalmente. Conseguiram jogar parte do legado do Nelson Mandela em uma referência quase folclórica, de imagens ultrapassadas, mas que têm nenhuma ou muita pouca influência no contexto atual. O Mandela se tornou quase que uma imagem envelhecida de um pacifista, pura e simplesmente, sem nenhum vínculo com a história de luta efetivamente. O Mandela não se resume ao cara que ficou preso e saiu pacifista. Mas o Mandela tem uma história que é muito maior do que isso, inclusive dos extremos a luta,  inclusive por essa razão ter sido preso até ressignificar isso de maneira que a reconciliação se tornasse um papel importante. Então tem ânimo, porque a gente sabe dessa história e tem frustração porque transformaram isso em um mito ultrapassado. A única imagem que é vista do Mandela é a imagem dele sorrindo e acenando, sem nenhum vínculo com a história de luta que ele construiu, que é bem maior do que isso. A gente só conhece o Mandela estadista, né? O que é muito pouco. Comparado com todas as décadas de luta, o Mandela estadista é muito pouco.

UV: E considerando que a vida dele não foi totalmente não violenta, como você vê essa transformação?

RP: Precisamos pensar a disputa em torno do sentido da violência. Tem uma coisa que é interessante no movimento negro e no movimento de consciência negra, mais especificamente os direitos civis nos Estados unidos e a Consciência Negra na África do Sul, que é ressignificar inclusive a própria ideia da violência: se o que eles fazem pode ser dado como violência pura e simplesmente ou uma resposta reflexo da violência primeira que o povo negro sofreu a vida toda. Então, é claro que o Mandela funda uma dissidência no Congresso Nacional Africano (CNA) que escolhe pelo extremo da luta armada. O Mandela tentou muitas alternativas, passando pela reconciliação, pela negociação, pela conversa, passou pela formação e consciência e também passou pela luta armada como uma alternativa. Mas essa alternativa pela luta armada, em um contexto de violência, nunca foi pensada como uma violência deliberada. Mas como os limites possíveis de resistência que põem fim ao regime do apartheid. Tentar apagar isso como se isso manchasse a imagem do Mandela só tende a essa perspectiva opressora e dominante mesmo, que é tentar “purificar ao máximo” a imagem do Nelson Mandela para que ele só tenha essa imagem. Que é o que tentam fazer com o Martin Luther King. Só existe essa imagem do Nelson Mandela porque a imagem vinculada atestando ou sendo conivente com a violência como forma de resistência, é uma imagem, inclusive, a ser manipulada para que não se levante resistência, que se recorra a violência. Então quando eu falo de frustração em relação ao seu legado, eu digo inclusive com relação a isso. Não faz qualquer sentido apagar os recursos do Mandela em relação a luta armada como se isso fosse recorrer a violência de uma barreira deliberada e sem qualquer relação com a resistência pela qual ele estava lutando. O Mandela é tudo isso. E mesmo derrotado, mesmo com todas as suas décadas de prisão, ainda assim, resistiu. Esse Mandela que recorre às armas não compromete o Mandela conciliador e pacifista. Apagar isso é só mais uma forma de silenciar qualquer possibilidade de resistência enfática.

UV: Na sua opinião o que significa a cultura da não violência?

RP: A cultura da não violência ou a alternativa da não violência, primeiro é preciso defini-la pelo que ela não é, porque nessa disputa do sentido do que é a não violência, tenta se vender a ideia da não violência como se ela fosse uma pura aceitação, uma pura subjugação, um recurso de negociação infindável e sem propósito. A cultura da não violência é levar ao limite a negação da violência não só como uma forma de gestão, mas como uma forma de condução da vida pública. A não violência como grande mediador das relações sociais. Só que quando você recorre a política e a ideia da não violência não é simplesmente se recusar à violência, ma é sobretudo o enfrentamento de toda a violência. A violêncoia não é não tocar na violência, não é apontar para outro tipo de violência. É exatamente ao contrário. A não violência é a exposição da crueldade da violência e de como ela é usada. Isso está um pouco por trás do Martin Luther King, um pouco por trás da escolha do Gandhi, está um pouco por trás dos pastores que falavam, assim como Martin Luther King. Quando Martin propõe a não reação, não significava submissão. A não reação é expor até que ponto a violência chega e as vítimas que a violência causa. Então a cultura da não violência é a cultura que denuncia e expõe permanentemente os limites onde a violência é capaz de levar. Então ela constantemente denuncia a violência e de onde ela vem, em especial, vem de quem tem o monopólio da violência, que é a violência do Estado. Então a não violência não é pura e simplesmente reagir quando uma operação viola uma comunidade, por exemplo, que é uma violação que vem pela mão do Estado. A não violência não é não responder, é exatamente o contrário. Criticam por exemplo quando tem uma operação em alguma comunidade e os moradores ateiam fogo em ônibus. Essa violência já é a exposição da violência que veio antes. Então, não violência é o enfrentamento dos limites da violência.

UV:  Sello Hatang, diretor da Fundação Mandela, disse recentemente que é necessário construir novos valores coletivos para um bem comum. Pensando no Brasil, o que você acha dessa afirmação?

RP: A minha pretensão e inclinação é caminhar totalmente com essa percepção de que, de fato, precisamos construir coletivamente nossos valores, precisamos ressaltar alguns e construir coletivamente outros. O Mandela abraçou de alguma forma e com muita intensidade, com a influência do Desmond Tutu, um bispo anglicano, a perspectiva da reconciliação, e entendeu a conciliação como o único instrumento. Talvez, em uma sociedade muito marcada pelos cortes que o apartheid deixou, seria impossível uma restauração da sociedade sul-africana sem a perspectiva da reconciliação. A reconciliação não é vítimas e algozes se abraçarem como se nada tivesse acontecido. A reconciliação é a conversa olho no olho que expõe todas as feridas causadas por essa história e a possibilidade de construir algo coletivamente. Então, pensando no Brasil, vivemos o mesmo contexto. Nós estamos há anos, há décadas, disputando valores que são muito setorizados, seja socialmente, identitariamente, por classes, religiosamente. É como se estivéssemos à beira do precipício. Negando a possibilidade de que a gente possa se reconciliar e construir valores coletivamente. Porque a nossa história agora é outra, nossa sociedade é outra, nosso tempo histórico é outro e a gente não vai muito longe se construímos valores setorizados e disputamos por eles eliminando quem tem valores diferentes.  O nosso caminho será maior se construirmos valores em que todo mundo participe e tenha a oportunidade de ser lembrado e respeitados por eles. Então, eu fecho com ele. Não temos mais muito tempo para ressignificar valores que não nos incluem, precisamos construir valores que sejam coletivos.

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