Mulheres de Duque de Caxias fortalecem potências coletivas em circuito ancestral

“O processo para conseguir a mudança [em nosso território] é a reunião. O conversar sobre os nossos direitos humanos, direito de se vestir, andar, conversar, se arrumar, curtir, sair, passear”, reflete Cecília Saraiva, participante da Usina de Valores em Duque de Caxias (RJ).

No dia 30 de novembro de 2024, mulheres de Duque de Caxias (RJ) percorreram a região portuária do Rio de Janeiro para uma vivência do circuito de herança africana. A atividade, que destacou a história e a identidade negra afro-brasileira, promoveu um encontro entre passado e presente, conectando as participantes a questões de memória, gênero e direitos humanos.

O programa fez parte da etapa de mobilização do percurso formativo da metodologia Usina de Valores, iniciativa de educação popular em direitos humanos do Instituto Vladimir Herzog em parceria com o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania. Em Duque de Caxias, um dos 21 territórios nos quais a metodologia é desenvolvida,  está associada à organização não governamental Nós em Movimento, que busca integrar moradores de favelas e periferias na construção de políticas públicas.

A experiência começou com um passeio guiado por Cosme Felipe, que apresentou uma perspectiva inter-religiosa sobre a africanidade, abordando o combate à intolerância religiosa e valorizando as expressões artísticas e culturais do povo preto, como o samba e a dança. Durante o trajeto, o grupo visitou o Morro da Conceição, a casa da escritora Conceição Evaristo e passou pelo Cemitério dos Pretos Novos. O momento foi encerrado com um almoço comunitário em uma casa de cultura, fortalecendo os laços entre as participantes.

Cosme Felipe guiou o passeio na região portuária do Rio de Janeiro para uma vivência do circuito de herança africana. Foto: Reprodução.

Na parte da tarde, a educadora e contadora de histórias Camila Zarite conduziu o grupo ao Instituto de Artes, onde visitaram uma exposição sobre a formação indígena e quilombola do estado do Rio de Janeiro. Em seguida, as mulheres pegaram o VLT para conhecer o Museu de Arte do Rio (MAR), cuja coleção afrocentrada gerou reflexões sobre identidade e resistência. A experiência destacou a importância de conectar saberes ancestrais e intergeracionais, promovendo o diálogo entre diferentes gerações.

Durante o percurso, as mulheres foram fotografadas em uma ação da artista visual e fotógrafa Marina Alfaya, realizada no Casarão Cultural João de Alabá. Os registros integraram a exposição “Para os olhos lembrarem quando o coração esquecer”, que celebra a memória afro-brasileira e o protagonismo narrativo.

Ação da artista visual e fotógrafa Marina Alfaya, realizada no Casarão Cultural João de Alabá, é um projeto de criação colaborativa estabelecido em parceria com o público, na intenção de fabular imagens e textos que contem histórias de vida. Foto: Reprodução.

“Elas andaram muito, circularam bastante. Tinha adulto, criança, adolescente. Foi um grupo diverso e bonito. Conseguimos passar por vários diálogos que eram importantes, não só do povo preto, mas do povo quilombola e indígena”, conta Karen Kristien, educadora territorial que conduziu todo o percurso formativo com o grupo. Ela explica que a experiência trouxe reflexões sobre o uso de espaços públicos como locais de vivência comunitária que precisam ser ocupados.

Cecília Saraiva foi uma das mulheres que participou do passeio e, após todo o processo formativo do qual ela fez parte, nota um maior pertencimento ao grupo e à cidade. “Antes, eu ficava muito presa dentro de casa, passando por situações difíceis sozinha e sem noção do que fazer. Agora, minha vida mudou. Somos uma família de amigas que podemos se unir umas com as outras para conversar e resolver o que é melhor para nós, mulheres. Agora estamos assim: a gente passeia, vai ao teatro, vamos conhecer a história de antigamente.”

Para ela, a mudança de perspectiva se relaciona com a forma como percebe seus próprios direitos e das outras mulheres: “Nós conversamos sobre nós, mulheres, sobre nos cuidarmos, termos acesso a mamografia, ginecologista. Antigamente, era difícil, mas agora, depois dessas reuniões, corremos atrás e conseguimos a mudança total”.

Valorizando a cultura e enfrentando desafios

As mulheres que participaram da vivência fazem parte da Roda de Mulheres do Centenário, um grupo consolidado em Duque de Caxias ligado a uma igreja protestante no Morro do Sapo. Ao longo dos encontros do processo formativo da Usina de Valores, iniciado em junho de 2024, elas identificaram desafios em comum, como as dificuldades no acesso a exames preventivos, consultas médicas e informações sobre direitos e serviços públicos de saúde.

O aprofundamento da temática escolhida pelo grupo, com rodas de conversa com participação de especialistas e valorização dos saberes locais, evidenciaram que o cuidado com a saúde vai além do atendimento médico, envolvendo também o direito à cidade, condições de vida dignas e equidade de gênero. 

Oficina formativa da Usina de Valores em Duque de Caxias, Rio de Janeiro, realizada em agosto de 2024 abordou as relações históricas e culturais entre mulheres negras, a natureza e o território, valorizando saberes ancestrais e práticas sustentáveis. A ação teve participação de Majé Niara do Sol, líder da Horta Comunitária Dja Guata Porã, e Mona Lima, pesquisadora sobre memória e biointeração. Foto: Reprodução.

A ocupação do território durante os encontros foi uma estratégia para aproximar as participantes dos espaços e serviços públicos, reforçando o reconhecimento desses lugares como patrimônio coletivo. O percurso não apenas estimulou reflexões individuais, mas fortaleceu o senso de pertencimento e a mobilização coletiva em defesa de direitos. Para essas mulheres, ocupar territórios não é apenas estar presente fisicamente, mas afirmar sua existência e reivindicar cidadania e justiça social.

A participante Cecília, por exemplo, conta que a experiência contribuiu para uma mudança em seu olhar em relação aos próprios direitos. “Vou e volto dos lugares onde quero, as pessoas precisam me atender. Antes, quando eu não conseguia alguma coisa, ficava deprimida no meu canto. Depois da Usina de Valores, me deu mais força para ir atrás”.

Saraiva conta que o processo formativo inspirou reflexões e ações sobre seus próprios direitos e cidadania: “Eu tenho filhos, tenho netos. Eles precisam de saúde, escola, educação, diversão, realizar sonhos, não desistir. Nunca esquecer o valor e os direitos que nós temos”, afirma.

Muitas das visitas contaram com a participação de representantes institucionais dos equipamentos públicos, promovendo um diálogo direto entre as mulheres e os profissionais desses espaços. A troca de conhecimentos entre diferentes experiências proporcionou aprendizados sobre soluções coletivas e práticas de organização popular, além de fortalecer estratégias de luta conjunta. Ao se conectarem com novas vivências culturais e históricas, as participantes reconheceram suas próprias potências enquanto coletivo, reafirmando que a transformação social acontece a partir da união e do engajamento comunitário. “O processo para conseguir a mudança [em nosso território] é a reunião. O conversar sobre os nossos direitos humanos, direito de se vestir, andar, conversar, se arrumar, curtir, sair, passear”, reflete Cecília Saraiva.

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