Paraíba sim, sinhô! Nordeste, não teste
Por Lenne Ferreira
“Cês tão ligado que o que nós chama Nordeste, na verdade, foi inventado. Porque tu Paulista não se considera sudestino?
Mineiro e carioca tem identidade própria.
Mas é tudo a mesma ‘merda esses tal de nordestino’.
Só para começo de conversa Nordeste tem nove estados,
Nem vem dizer que não sabia
Sul e Sudeste tem IDH foda, mas não tem aula de geografia?
É de ter um ataque, ator de novela quando imita o nosso sotaque.
É que pra vocês nós é caricatura.
Não importa de onde eu venho me chama de Paraíba”
Bell Puã
Nordeste da Paraíba também. Mas não só. Quarto estado mais populoso do país e que tem em sua constituição étnica fortes traços indígenas, a Paraíba é motivo de orgulho para os nordestinos. Potiguaras, Cariris e Ariús foram alguns dos povos que influenciaram costumes e práticas dessas bandas do Brasil, que a ignorância xenofóbica insiste em apequenar. Qualquer pesquisa rápida na Web, a mesma que armazena tanta injúria contra o Estado, ensaia a dimensão da importância da Paraíba para o processo de autonomia dessa nossa ainda tão frágil república brasileira. Só para citar fatos históricos que tiveram participação decisiva dos paraibanos, povo tão usado como mote para piadas preconceituosas contra nordestinos, vale enumerar: a Revolução Pernambucana de 1817, Confederação do Equador e Revolução de 1930, movimentos fundamentais para a emancipação econômica e política do Brasil. É por isso e por muito mais que, para o povo nordestino, a Paraíba é, SIM, referência de luta e resistência. Tem que ser muito “cabeçuda” mesmo para dar conta de tanta revolução. O Nordeste todo só não bate continência porque saudação militar por aqui não é sinal de respeito. Um “chega batendo” vale muito mais.
O estigma preconceituoso que recai sobre os mais de 51 milhões de habitantes dos noves estados da região Nordeste, parece não ter data de validade e é comumente sustentado por uma mídia hegemônica, racista e classista que forma um senso comum estereotipado e sem representatividade real. Senso este que guia o discurso da maioria e que se faz presente até na fala do Presidente da República. Aqui, faz todo sentido retomar a conhecida frase do quase desconhecido Conde Joseph-Marie de Maistre: “O povo tem o governo que merece”. Maistre, que defendia o regime monárquico e cristão e era contra os princípios defendidos pela Revolução Francesa, só tinha razão numa coisa: a escolha errada dos representantes de uma nação é responsabilidade de seu povo, que, como punição, sofre as consequências. Mas teria o povo brasileiro conhecimento suficiente para poder escolher? A célebre frase se aproxima da realidade brasileira não só pelos desmandos assistidos com audiência internacional e que violentam, principalmente, os Direitos dos mais pobres, massa expressiva de eleitores, mas também nos mostra com qual tipo de pensamento se identifica a maior parte dos brasileiros . Temos um Governo que é reflexo de um país que renega o que há de mais sagrado: suas raízes.
A região Nordeste, tão associada à miséria, coronelismo, messianismo e ignorância é a mesma que iniciou o projeto do país e lutou pela sua autonomia. As tentativas de diminuir sua relevância, inclusive econômica, ratifica a ignorância nacional sobre uma região que serviu de piloto para um projeto democrático de nação de um Brasil que nasceu nordestino. E isso pode doer muito às vistas “nordestefóbicas”, mas é isso mesmo e não custa repetir: Foi o Nordeste quem deu cria a esse país que muitos e muitas tentam roteirizar a partir de um narrativa distorcida e incoerente; que vai de encontro ao sentimento nacionalista que, paradoxalmente, esse Governo e respectivos adeptos tentam encampar. Patriotismo de verdade passa pelo lugar do respeito e da admiração às suas raízes e história. O Nordeste deve ser situado neste lugar. Aliás, para o nosso azar, foi aqui que os nossos colonizadores ancoraram e iniciaram um projeto predatório de fragmentação de uma “civilização” indígena já vigente. É! Já começou errado.
Refletir sobre o processo que levou à formulação de um senso comum tão naturalizado, ultrapassado e preconceituoso acerca do Nordeste brasileiro é também um exercício de olhar para a História e entender os elementos que fizeram parte da construção de um imaginário social que reduz a paisagem visual de uma região a um esqueleto de cabra sobre o chão rachado. Nos campos das artes e da pesquisa são vastos os estudos que problematizam esse olhar reducionista para a região. Em “A invenção do Nordeste e outras artes”, o historiador paraibano Durval Muniz de Albuquerque, fala sobre a necessidade de “dissolução do Nordeste”. “O Nordeste é uma construção imaginária, discursiva, em grande medida conservadora e reacionária”, afirmou em entrevista para o Conversa Afiada. Na obra, ele reflete sobre os signos inventados para dar sentido aos interesses das elites senhoriais saudosas da “Casa Grande Senzala”, em decadência no período dos anos 30, quando Sul e Sudeste viraram eixo econômico do país. Esse saudosismo, influenciado pelo pensamento de Gilberto Freyre, encontra eco dentro do atual discurso da elite brasileira, tão colonialista e que, estrategicamente, usa e abusa do imaginário popular para deslegitimar toda uma região. O que faz todo sentido no campo das disputas políticas e no plano maquiavélico de tirar do poder e deslegitimar o Partido dos Trabalhadores, com grande influência no Nordeste, chão de onde brotou o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. “Esses nordestinos fdp têm que morrer na seca”, diziam posts revoltados com o resultado das eleições de 2016, quando Dilma foi eleita. Oi? Seria o Nordeste inteiro uma paisagem semi árida, de ignorantes e miseráveis?
Jornalista e socióloga pernambucana, Fabiana Moraes no seu livro reportagem “Os Sertões”, premiada com o Esso de Jornalismo, faz uma releitura moderna da obra clássica de Euclides da Cunha, de 1902, que retratou a Guerra de Canudos. Logo na introdução, ela e questiona: “Com licença, moço, e desculpe a curiosidade: não há outra cor no Sertão? Amarelo ou Azul? Ou ele é todo assim, esse tom de chão rachado?”. Esse cenário, tão presente nas obras do período conhecido como “Romance dos 30”, representado por nomes como Graciliano Ramos e José Lins do Rêgo, carregado por tons dramáticos, até hoje referências nos vestibulares de todo o país, parece muito marcado no imaginário dos brasileiros e brasileiras. São trabalhos fortes e de grande relevância não só para o campo da Literatura como para a Sociologia e História, mas que não podem servir de parâmetro único para se entender um Nordeste que é célula viva e pulsante, portanto, em constante transformação.
Mas quem são os responsáveis por manter essa pasteurização dos traços de uma região tão rica e diversa? Durval observa que, não só a Literatura, o Cinema e outros campos das artes, assim como a mídia hegemônica, contribuíram para consolidar o senso coletivo que se tem sobre o Nordeste. No entanto, a mídia privilegiada e com expressiva inserção nas casas brasileiras tem o dever de recontar essa história. Entretanto, já é mais que evidente a má vontade e falta de interesse político em aprender outros Nordestes e representar quem somos de verdade enquanto país. Admitir de onde viemos é constatar o que sempre foi renegado pela sociedade brasileira, que é a nossa origem e herança afro indígena. E se não há vontade política nem responsabilidade da mídia eixo Sul/Sudeste, resta aos próprios nordestinos apresentar à população de todo o país o tom e as cores que têm uma região tão híbrida. O jornalismo independente, produzido especialmente no NE, já tem percorrido esse caminho de desconstrução. Projetos como “Os Sertões”, “Um outro olhar sobre o semiárido, nasceu para contrapor a imagem trágica reforçada pela grande mídia “e mostrar todos os aspectos da vida sertaneja, debater questões cruciais e promover a cultura da região”.
No campo das artes, da Sociologia e outros campos de conhecimento são muitos os esforços para “dissolver” esse Nordeste inventado. Vozes como a da poeta e escritora Bell Puã, do Slam das Minas de Pernambuco, esbravejam Nordestes outros. Por isso, a importância de difundir autoras que deveriam virar leitura obrigatório no vestibular também. É sobre reaprender nossa regiã;o a partir de olhares afronordestinos e decoloniais, que nos colocam em um não lugar, que é muito mais confortável do que esse lugar fixado no tempo que estrangeiros tenta nos manter. Em seu livro reportagem sobre o sertão pernambucano, Fabiana Moraes discorre: “a terra dos índios, quilombolas, cientistas, ciganos, agricultores, empresários, travestis; onde se bebe cachaça com Coca-cola e se mistura incelência com AfrikaBabaataa”. Somos diversos e não cabemos em nenhum rótulo. Somos Alagoas, Bahias, Cearás, Maranhões, Paraíbas, Piauís, Pernambucos, Rio Grandes dos Nortes e Sergipes. Somos forró pé-de-serra e bregafunk em alta potência, xaxado e Trapp. “Respeita a capitania de Zumbi dos Palmares, símbolo da negra luta”, exige Bell Puã nos seus versos. Escuta/lê as mina preta cabra da peste do Nordeste!