Política e religião se discutem e se misturam
Por Ilka Guedes
A relação entre política e religião está longe de se distanciar e sua interligação pode ser comprovada ao longo da história das sociedades. Tendo em vista que há, aproximadamente, dois séculos atrás religião e política andavam juntas. No Brasil essa relação vem de longa data e a presença de grupos religiosos cristãos na política institucional tem aumentado e mudado sua configuração.
O Catolicismo foi a religião oficial do Brasil até o período da Proclamação da República quando houve a separação entre estado e igreja, onde teoricamente deveria ter havido o distanciamento político das religiões, a garantia da liberdade religiosa e o reconhecimento do estado laico. Antes disso a Igreja Católica interferia diretamente na política institucional e todos os documentos oficiais só tinha validade se passassem pela Igreja.
Com o reconhecimento do estado Laico, o Brasil deveria garantir a liberdade de todas as manifestações religiosas e culturais sem imposição ou discriminação de doutrinas além de garantir que todas as políticas fossem elaboradas e aplicadas sem a influência das religiões. Contudo, na prática, essa relação não se distanciou instantaneamente e a igreja católica continuou e, até hoje, em certa medida, ainda exerce alguma influência na política institucional.
Nas últimas décadas temos visto a retração da influência do catolicismo e o surgimento de outras forças religiosas que interferem na vida social e nos rumos da política institucional. O exemplo são os movimentos evangélicos pentecostais e neopentecostais que desde o início dos anos 80 tem crescido de forma exponencial.
A religião evangélica é a que mais cresce no Brasil e na América Latina. Segundo dados do último censo do IBGE de 2010, a população evangélica no Brasil passou de 7,8 milhões em 1982 para 43,2 milhões.Um crescimento significativo que se reflete na presença desse segmento no Congresso Nacional, que passou de 12 parlamentares em 1982 para 94 eleitos que se declararam evangélicos no pleito de 2018, sendo 85 na Câmara dos Deputados e 9 no Senado, segundo o Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap).
Olhando para a história política do Brasil, e podemos dizer do mundo, a frase “política e religião não se discute” parece não fazer muito sentido. O que vemos é que ao longo dos anos alguns líderes evangélicos têm utilizado a religião como uma estratégia de manutenção do poder político, econômico e cultural apoiado fortemente pelas mídias voltadas para este público que tem como objetivo dar maior visibilidade a essas vertentes religiosas. Por isso não é difícil ver em vários canais abertos de televisão,durante todo o dia, programas com pastores evangélicos falando para seus fiéis e para quem mais queira ouvir.
A antropóloga argentina Rita Segato coloca que o avanço da religião evangélica neopentecostal nos países do sul global é um projeto influenciado pelos Estados Unidos e instigado pelos líderes religiosos em aliança com a extrema direita como meio de minar os movimentos nacionais de libertação, desorientando e fragmentando a classe trabalhadora.
No início dos anos 90 com a instauração do neoliberalismo, das privatizações e com a perda de direitos, a busca por saídas individuais da crise e individualização dos problemas sociais, a Teoria da Prosperidade (estrutura teórico teológica das igrejas pentecostais) ganha força e reforça o neoliberalismo.
Por outro lado, muitas pessoas têm suas necessidades de socialização atendida a partir da convivência nas igrejas. Assim são formadas amizades sólidas, relações de confiança e vínculos que se solidificam e contribuem com a permanência dos fiéis em determinada denominação religiosa.
Isso faz sentido à medida que vemos nos bairros mais pobres a falta de políticas públicas de toda ordem e um aumento assustador no número de igrejas neopentecostais. Comunidades que muitas vezes têm apenas uma escola pública, um único posto de saúde e poucas opções de lazer para a população com um número significativo de igrejas evangélicas das mais diversas denominações que se tornam o principal local da vida social comunitária.
Nos períodos eleitorais, apenas o aumento do número de fiéis não justifica o sucesso dos candidatos evangélicos. Esses candidatos se colocam como representantes dos novos tempos, fortalecendo uma ordem conservadora no cenário político e utilizando o discurso do medo como ferramenta de dominação e de direcionamento nas intenções de votos.
Outros três elementos favorecem as candidaturas evangélicas. O primeiro é a disponibilidade de mão de obra para as campanhas por meio do envolvimento de obreiros e voluntários que desempenham o papel de cabos eleitorais. O segundo são as redes de contatos evangélicos que disponibilizam serviços e capital social não contabilizado que alcança um raio mais amplo da comunidade religiosa. E por fim, a destinação de recursos financeiros para as campanhas advindas dos dízimos e ofertas que não passam por mecanismos de controle e fiscalização.
Dessa forma as igrejas se convertem em máquinas eleitorais mais eficientes que os partidos políticos, além de reduto para lideranças político-religiosas que dispõem de grande capilaridade para chegar nas comunidades pobres, assim como nos círculos empresariais. Ambas as frentes se comunicam com várias demandas políticas eleitorais.
Para o ato de candidatos que se aproveitam da religião e se beneficiam da estrutura da igreja a que pertencem para influenciar o voto dos fiéis é dado o nome de abuso do poder religioso, que é uma mistura de abuso de poder econômico e abuso de autoridade relacionando a orientação política aos desígnios divinos.
Essas ações desenvolvidas por igrejas em apoio a candidatos não são casos isolados e se apresenta como um esquema organizado que interfere no princípio eleitoral onde todos devem ter as mesmas oportunidades e possibilidades para serem eleitos.
Embora a legislação eleitoral não menciona o abuso de poder religioso como crime, o Tribunal Superior Eleitoral vem buscando elaborar diretrizes para barrar principalmente a destinação de recursos financeiros por meio das igrejas para as campanhas eleitorais e impor limites às atividades eclesiásticas, visando a proteção da liberdade do voto.
Referências
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