‘Não saber comunicar seus valores é ser oprimido pelo valor do outro’, diz articuladora
Até o final de 2018 uma série de atividades formativas serão realizadas em São Paulo, Rio de Janeiro e Recife. A fase de planejamento e mobilização de grupos que atuam em prol da promoção dos direitos humanos em cada localidade contou com a participação de três articuladoras que integram o Usina de Valores.
Aline Rodrigues, cofundadora do coletivo de comunicação Periferia em Movimento (PEM), faz a articulação da rede de parceiros na capital paulista. Jornalista, comunicadora e moradora do extremo sul da cidade, o site de notícias que ela atua, junto com outras pessoas, nasceu com a intenção de produzir conteúdo jornalístico para e a partir dos bairros onde os idealizadores nasceram.
Com uma população com cerca de 360 mil pessoas, este é mais um dos territórios periféricos de São Paulo em condição desprivilegiada em relação à regiões centrais ou bairros mais elitizados. Um exemplo que ilustra essa realidade é a ausência de equipamentos de cultura para os moradores e moradoras. O distrito da Sé, na região central, tem 116,10% mais espaços de cultura e lazer em comparação ao Grajaú, por exemplo.
Tal discrepância, que se repete em outros indicadores, somando a ausência de uma cobertura jornalística que seja pensada e elaborada por quem vive essa realidade, foi o que motivou Aline e Thiago Borges, também integrante do coletivo, a criarem um projeto de comunicação local. Tudo começou como um trabalho de conclusão de curso da graduação.
Para Aline, os veículos de comunicação independente que têm surgido das periferias das cidades são ferramentas cruciais para a construção de novas narrativas sobre direitos humanos. Em sua opinião, grandes veículos de mídia atingem um maior número de pessoas, mas, normalmente, os conteúdos não dialogam de forma mais profunda e próxima com parte significativa população.
E aí entra a importância de iniciativas como o PEM. “Por mais que seja um trabalho de formiguinha, é possível trabalhar melhor o engajamento”, afirma Aline. Nesse contexto, o jornalismo independente é um instrumento essencial para a construção de novas narrativas a partir das margens. Além disso, as pautas definidas como prioritárias também contribuem para uma nova elaboração de valores e de repertório de defesa.
“O jornalismo é isso, fazer as pessoas se sentirem livres pra decidirem e bancarem seus valores sabendo comunicar isso. Porque se você não sabe comunicar seus valores, você é oprimido pelo valor do outro. Por mais que eu acredite, se eu não tenho uma boa comunicação, o valor do outro vai se impor”, explica.
TRAJETÓRIA
A afinidade com o jornalismo apareceu cedo. Quando criança, Aline tinha a mania de fazer um resumo do jornal do período da noite para depois repassar ao seu pai. O início de sua história com o jornalismo foi no Campo Limpo, onde mora até hoje. Aos 14 anos ela escreveu para o jornal do bairro, que era da igreja. “A primeira coisa que eu escrevi foi a manifestação de uma EMEI, uma escola do bairro”, conta.
Mais tarde, quando as aulas na faculdade começaram, ela identificou a diferença de abordagem jornalística em relação aos territórios periféricos e foi aí que nasceu a ideia de desenvolver um documentário sobre o bairro onde seus amigos de sala moravam. Depois da conclusão da faculdade, em 2009, abriram um blog para publicar as informações que não couberam no TCC, que foi um documentário. Desde então, não pararam mais.
Naturalmente, começaram a contar o que estava rolando na região e os moradores começaram a enviar sugestão de conteúdo. Depois da faculdade, Aline e Thiago equilibraram trabalhos remunerados com a gestão e produção de conteúdo para o PEM. Mas quanto mais o projeto crescia, mas sentiam vontade de se dedicarem exclusivamente a ele. Em 2012, tomaram uma decisão: “ou vai ou racha”.
“Eu ja era casada e meu marido tinha uma segurança financeira por ser servidor público e me disse: “vai lá”. E aí nós fomos! Com a parceria do Thiago, que foi sempre muito boa, nunca me senti sozinha para essa missão. Meses depois, ele se desligou da empresa dele também”.
Ela explicou que, nessa fase do empreendimento, foi determinante terem recebido uma formação sobre como estruturar um negócio. “Tínhamos essa dificuldade de ganhar dinheiro com o nosso trabalho e essa assessoria foi importante. Hoje a gente sabe como argumentar, negociar, sabemos defender e cobrar o justo pelo nosso trabalho. Ao mesmo tempo, continuamos fazendo várias oficinas para as quebradas. Já são quase 10 anos de Periferia em Movimento”, diz Aline.
Leia a entrevista abaixo.
UV: Nesses 10 anos, qual o maior aprendizado?
AR: Em relação ao conteúdo, fomos aos poucos definindo a nossa linha editorial e, junto com isso, pensamos também nossa posição no mundo. Começamos como blog. O site, com editorias definidas e linha editorial, é algo mais recente. No começo, a gente achava que divulgava muito os eventos e ações que as pessoas do bairro faziam, depois entendemos que não. Nós também falamos sobre as questões do bairro e que envolvem o direito à cidade e queremos mostrar o quanto a gente faz isso bem, o quanto somos profissionais. Já foi o tempo de dizer que fazemos no “improviso”. E hoje a gente consegue ter essa percepção, mas foi com o tempo. Mas o que sempre trouxemos e que é nosso centro é que o PEM nasceu para falar sobre, para e a partir das periferias.
UV: Já atuaram em frentes que vão além da produção de conteúdo?
AR: Além do blog, decidimos escrever um projeto de formação para o VAI – (Programa de Valorização às Iniciativas Culturais da Prefeitura de São Paulo) e recebemos o financiamento em 2010. Promovemos seis encontros, um por mês, para falar sobre os assuntos da região e em todos os encontro nos passávamos nosso documentário. Sempre tomamos muito cuidado em manter nossa coerência em dialogar com pessoas do próprio bairro. No ano seguinte, escrevemos um novo projeto com foco na redemocratização da mídia, mas esse com a proposta de realizar uma formação com foco em oficinas de comunicação, cinema amador e em despertar o olhar do quanto você pode contar sua versão das histórias.
UV: E como é o retorno dos leitores ou alunos que tiveram?
AR: Vários alunos que estiveram com a gente foram para o cinema, se tornaram produtores de conteúdo, pessoas voltaram pra escola. Mas ainda precisamos ter essa definição mais apurada, mas as pessoas falam muito que conhecem o PEM, também por estarmos muito na rua. Já ouvi uma menina de Parelheiros (bairro do extremo sul de São Paulo) dizer que ela conheceu melhor o bairro e a historia do bairro e das pessoas que estavam fazendo coisas lá perto através do nosso site. E é a nossa missão, pensar o direito a cidade e promover as soluções locais. Queremos contribuir para que o território entenda sua identidade. Em todas as oficinas que a gente faz, por mais rápida que seja, fazemos a provocação para que os participantes olhem primeiro para a sua história antes de valorizar a do outro.
UV: E como a comunicação e o jornalismo que nasce nas periferia pode contribuir na discussão sobre direitos humanos?
AR: Às vezes temos um reconhecimento de fora, antes de ter de dentro, dos familiares, por exemplo. E às vezes você faz uma super produção, uma série gigante de conteúdo sobre diretos humanos, e atinge pouca gente. Aí a uma grande emissora faz uma coisa bem mais simples e atinge milhões de pessoas. Por mais que seja um trabalho de formiguinha, esses milhões que chegam por este canal vão entender de forma menos profunda, o que já é bom. Mas, em minha opinião, nosso trabalho gera mais engajamento. O jornalismo é isso, fazer as pessoas se sentirem livres pra decidirem e bancarem seus valores sabendo comunicar isso. Porque se você não sabe comunicar seus valores, você é oprimido pelo valor do outro. Por mais que eu acredite, se eu não tenho uma boa comunicação, o valor do outro vai se impor.
UV: E na sua opinião, qual é a importância do Usina de Valores?
AR: Tem a ver com o que a gente fala, que é preciso primeiro se perceber, olhar para dentro, e depois pensar no outro. As pessoas estão fazendo pouco isso, pelo imediatismo, pela rapidez da informação, pela exigência de se posicionar. Quando fazemos oficinas com adolescentes, que estão em várias redes sociais, sentimos que é como se eles precisam se posicionar para tudo. E é impactante quando a gente fala: “você já percebeu que sua curtida significa ‘eu concordo, eu apoio’ e que o seu compartilhar significa propagar e fortalecer essa ideia?”. Quando a gente proporciona essa reflexão, que o Usina de Valores traz, faz a gente se questionar: “olha para os seus valores, o que você está fazendo tem a ver com os seus valores mesmo?”.