Uma breve história sobre os Direitos Humanos
Por Piedade Marques
A Segunda Guerra Mundial se alastrou de 1939 até 1945 e, à medida que o final se aproximava, cidades inteiras se estendiam em ruínas e chamas. Milhões de pessoas estavam mortas e milhões estavam sem lar e/ou passando fome.
Neste caos, nos dias 25 de abril a 26 de Junho de 1945, em São Francisco, nos Estados Unidos, foi realizada a Conferência das Nações Unidas sobre Organização Internacional com a participação de 51 nações aliadas, que se reuniram cheios de otimismo e esperança para instituir um corpo internacional que pudesse promover a paz e prevenir futuras guerras.
Os ideais da organização foram declarados no preâmbulo da sua carta de proposta: “Nós, os povos das Nações Unidas, estamos determinados a salvar as gerações futuras do flagelo da guerra que, por duas vezes na nossa vida, trouxe incalculável sofrimento à Humanidade”. E em 24 de outubro de 1945, A ONU (Organização das Nações Unidas) surge como uma organização intergovernamental com o propósito de salvar as gerações futuras da devastação do conflito internacional.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, que delineia os direitos humanos básicos, foi adotada pela Organização das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948. O documento, esboçado inicialmente pelo canadense John Peters Humphrey, contou com a ajuda de várias pessoas de todo o mundo.
Nesta Assembleia Geral da ONU, foi proclamada por meio da Resolução 217 a Declaração Universal dos Direitos Humanos , tornando o documento marco na história dos Direitos Humanos, tem a representação de diferentes origens jurídicas e culturais de todas as regiões do mundo e estabelece, pela primeira vez, a proteção universal dos Direitos Humanos. Ela foi traduzida em mais de 500 idiomas e inspirou as constituições de muitos Estados e democracias recentes. E o Brasil foi um dos países signatário da declaração.
Para melhor compreendermos, os Direitos Humanos são direitos garantidos a todos os indivíduos, independente de classe social, etnia, gênero, nacionalidade ou posicionamento político. Em sua definição, as Nações Unidas os define enquanto “garantias jurídicas universais que protegem indivíduos e grupos contra ações ou omissões dos governos que atentem contra a dignidade humana” e são considerados direitos fundamentais por terem sido determinados em um ordenamento jurídico, como tratados e constituições.
O jurista Karel Vasak, em 1979, no intuito de ajudar a situar as diferentes categorias de direitos no contexto histórico em que surgiram, criou uma classificação denominada de “gerações de direitos”. Distribuindo os direitos humanos em: primeira geração (liberdade), segunda geração (igualdade) e terceira geração (fraternidade).
- Direitos humanos de primeira geração- É associada ao contexto do final do século XVIII, mais precisamente à independência dos Estados Unidos e criação de sua constituição, em 1787 – e à Revolução Francesa, em 1789. Seu marco histórico é a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Sua ideia principal é a de liberdade individual, centrada nos direitos civis e políticos. Esses direitos só poderiam ser conquistados mediante a abstenção do controle do Estado, já que sua atuação interfere na liberdade do indivíduo.
- Direitos Humanos de segunda geração – Esses surgem após a Primeira Guerra Mundial, quando começa a se fortalecer a concepção de Estado de Bem-Estar Social. Surge de uma necessidade do Estado garantir direitos de oportunidade iguais a todos os cidadãos. Estes estão ligados ao conceito de igualdade e mais preocupados com o poder de exigir do Estado a garantia dos direitos sociais, econômicos e culturais, todos imprescindíveis à possibilidade de uma vida digna.
- Direitos humanos de terceira geração- Surge nos anos 1960, é norteado pelo ideal de fraternidade ou solidariedade, sua principal preocupação são os direitos difusos e coletivos.
Para além das três gerações, que não são unânimes entre os estudiosos, além do avanço da biotecnologia, da informática, e dos movimentos feministas. Há uma defesa de mais duas gerações.
- A “geração dos direitos da bioética e da informática”: Essa geração é concebida no século XX como resultado da globalização dos direitos políticos, onde passa a ser preocupação os direitos à participação democrática, ao pluralismo e à informação, todos esses fundados na defesa da dignidade da pessoa humana contra intervenções abusivas, sejam elas por parte do Estado ou de particulares.
- A “geração Direitos Humanos das mulheres”: Tem sido defendido como mais uma geração dos direitos humanos, pois tem sido definido aqui diversos instrumentos para a proteção e a expansão de seus direitos. Tais instrumentos foram se ampliando historicamente por meio da ratificação de planos, acordos, tratados ou protocolos. E isso pode ser creditado ao empenho e à mobilização de movimentos de mulheres e feministas.
A discriminação sofrida pelas mulheres está definida na Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra Mulheres da ONU de 1979 que diz:
“Discriminação contra mulheres” designa qualquer distinção, exclusão ou restrição feita com base no sexo, que possua o efeito […] de diminuir ou anular o reconhecimento, desfrute ou exercício pelas mulheres […] (sobre a base de igualdade de homens e mulheres) de Direitos Humanos e liberdades individuais […] em qualquer campo”.
Os Direitos Humanos no Brasil
No Brasil, as diversas constituições brasileiras são umas das formas de entender a evolução dos direitos humanos. Na Constituição de 1824, por exemplo, apesar do País se encontrar no Período Imperial e a existência da escravidão, em que os escravizados eram tratados como produto e propriedade do senhor, sofriam as mais diversas formas de violências, não possuíam liberdade, eram desrespeitados, além de terem comprometidas sua integridade física e muitos perdiam a própria vida; apareciam na constituição princípios de garantia dos direitos políticos e civis, concentrado nas mãos do imperador. O objetivo era garantir principalmente a liberdade, a segurança individual e a propriedade, dos homens brancos, heteros e ricos da época.
Na Constituição de 1891, no período republicano, foi garantido o sufrágio direto para eleição de deputados, senadores, presidente e vice-presidente. Entretanto, estavam impedidos de votar mulheres, negros, mendigos e analfabetos. O sufrágio estava longe de ser universal, apesar da constituição defender os princípios de liberdade, igualdade e justiça.
Curiosamente, esta Constituição trazia em seu escopo o direito à plena liberdade religiosa, à defesa ampla aos acusados, direito à livre associação e reunião, sem contar com a criação do habeas corpus como forma de remediar casos de violência ou coação por ilegalidade ou abuso de poder. Até os dias atuais, terreiros de Candomblé e Jurema são invadidos e a população negra e pobre não tem acesso à justiça.
Com a revolução constitucionalista de 1932 e a posterior Constituição de 1934, a Constituição estabeleceu diversos ganhos em direitos sociais, mas vigorou por apenas três anos. Chegou a seu fim com o início do Estado Novo, em 1937, período marcado pela quase inexistência dos Direitos Humanos.
O período do Estado Novo resultou em muitos obstáculos para o avanço dos Direitos Humanos. No período de 1937 a 1945 ocorreu o fim da liberdade política e a imposição de mecanismos de controle da sociedade com o fechamento do Congresso e a proibição de funcionamento de quase todos os partidos políticos.
Ele também trouxe Constituição de 1937, que criou o Tribunal de Segurança Nacional, com competência para julgar qualquer crime contra a segurança do Estado. O governo assumiu o domínio sobre o Poder Judiciário e nomeou interventores.
Neste período o Estado brasileiro tinha fortes influências fascistas e autoritárias, além dos direitos fundamentais terem sido enfraquecidos e esquecidos, principalmente por causa da Polícia Especial e do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), que censurava as comunicações orais e escritas, inclusive em correspondências.
Com o fim do Estado Novo, uma nova constituição passou a vigorar em 1946, e o cenário foi alterado. Sendo restaurados e ampliados os direitos e garantias individuais. Mas esses avanços não duraram muito, pois o desrespeito aos direito fundamentais volta a aparecer em 1964, com a instauração do Regime Militar.
Em 1964 os militares assumiram o Governo Brasileiro e prometeram que a intervenção seria curta, só o suficiente para que o país superasse os problemas que levaram à intervenção. Nesta conversinha, o Regime Militar durou 21 anos e foi marcado pelo centralismo e autoritarismo, resultando numa em séries de violações aos direitos fundamentais.
O sistema político foi afetado com medidas duras como a cassação aos direitos políticos dos opositores, fechamento do Congresso, extinção dos partidos políticos e a criação do Serviço Nacional de Informações (SNI). Nesse período, a repressão policial aumentou em larga escala, com as forças militares tendo carta branca para prender opositores do governo sem necessidade de acusação formal ou registro, inclusive sendo instituída a pena de morte.
O Regime Militar foi um período marcado sobretudo pelas torturas, sequestros, assassinatos e desaparecimento de opositores, havendo centros de tortura espalhados pelo país, ligados ao Destacamento de Operações e Informações.
O então presidente João Baptista Figueiredo, em 1979, decretou a lei de anistia, que de um lado permitiu que os opositores do regime pudessem voltar ao país. Mas, por outro lado, defendeu os militares, fazendo com que os mesmos não pudessem ser processados pelos crimes cometidos durante a ditadura.
Com o fim da ditadura militar, a abertura da democracia, com eleições diretas, o país tem a chance de se reencontrar com os Direitos Humanos, construindo com várias mãos a Constituição Federal de 1988, também conhecida como a Constituição Cidadã, que tem os Direitos Humanos garantidos em sua estrutura fundante. É considerada como um grande avanço jurídico, pois ela garante os direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais dos/as cidadãos/cidadãs.
Alguns dos princípios que visam a garantia da cidadania e da dignidade humana na constituição de 1988:
- Igualdade entre gêneros;
- Erradicação da pobreza, da marginalização e das desigualdades sociais;
- Promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, gênero, idade ou cor;
- Racismo como crime imprescritível;
- Propôs direito de acesso à saúde, à previdência, à assistência social, à educação, à cultura e ao desporto;
- Reconhecimento de crianças e adolescentes como pessoas em desenvolvimento;
- Estabelecimento da política de proteção ao idoso, ao portador de deficiência e aos diversos agrupamentos familiares;
- Orientação de preservação da cultura indígena.
Historicamente não ser homem branco, hetero e rico é correr risco. Hoje, numa perspectiva intersexual, estes sujeitos tem suas identidades socialmente mais bem definidas, são pretos, mulheres, pobres, lésbica, trans, gay e periféricos. Num país como o nosso, baseado no racismo, no patriarcado, no sexismo, na LGBTQI fobia e no capitalismo, o leque de grupos sociais que estão sujeitas a violações de direitos e de todas as formas de discriminações e preconceitos são muito grandes.
Como vimos acima, numa breve descrição sobre a história dos Direitos Humanos, podemos perceber que, seja na construção histórica, em âmbito internacional ou no contexto brasileiro, os Direitos Humanos sempre foram um incômodo para os que constroem a política.
Se observarmos, na primeira geração dos Direitos Humanos, a ideia principal era a de liberdade individual, centrada nos direitos civis e políticos. No Brasil, a população negra estava escravizada e lutando por sua liberdade. Homens e mulheres negros sequer eram considerados sujeitos, muitos menos de direitos.
Na segunda geração, no Brasil, há um certo alinhamento com a constituição de 1946 e o cenário alterado, sendo restaurados e ampliados os direitos e garantias individuais, enquanto os países desenvolvidos iniciam o fortalecimento da concepção de Estado de Bem-Estar Social com o fim da segunda guerra.
Até a chegada da terceira geração, o Brasil encontra-se no suprassumo da violação dos Direitos Humanos, com a tomada de poder pelos militares e o uso da violência, do autoritarismo, o silenciamento das vozes discordantes e morte aos opositores. Os Direitos Humanos estão em plena ascensão fundada no ideal de fraternidade e solidariedade, sua principal preocupação são os direitos difusos e coletivos, o que, no Brasil, era rechaçado.
Com o avanço das lutas feminista, da bioética, da internet, o cenário vai alterando no âmbito internacional, mas as mulheres e homens negros e periféricos, continuam longe de toda e qualquer participação.
Inegavelmente, com a chegada de um governo de esquerda, muitos esforços foram superados, os desdobramentos dos acordos foram realizados, estruturas de governos foram criadas, legislações foram aprovadas, trazendo a esperança de um país digno, justo e equânime.
Muitos brasileiros tiveram alimentação, dignidade e o país teve a ousadia de sair do mapa da violência. As cotas raciais foram estabelecidas e a inserção na universidade foi ampliada, com a entrada de jovens negros, pobres e periféricos.
Apesar de todos esses princípios estarem em nossa Constituição Cidadã, de termos avançado em diversas situações e pontos, e que muitos avanços pudessem ser visto e sentidos pela sociedade brasileira, as contradições no cotidiano das pessoas têm se revelado perversas, violentas e de violações dos direitos humanos.
Hoje a Constituição Cidadã encontra-se em perigo, pois desde o golpe contra a democracia, o Congresso Nacional tem feito desmonte sistemático, alterando e entregando as riquezas da nação. A educação, a saúde, a previdência estão em sua eminência de destruição, sem autonomia e com intervenção de um governo imoral, fascista e entreguista.
Só nos restam a luta, a organização, o cuidado entre os pares, e a rua, para demonstrar nossa posição.
Firmes na luta, que a vitória é a única coisa que nos permitimos.
“Eles combinaram de nos matar, mas nós combinamos de não morrer.”
(Conceição Evaristo)
Referências
ALVES , José Augusto Lindgren, -A Arquitetura Internacional dos Direitos Humanos”, São Paulo, Ed. FTD 1997.
DAVIS, Angela. A liberdade é uma Luta Constante, São Paulo: Boitempo, 2018
BARSTED, Leila Linhares; HERMANN, Jacqueline, As mulheres e os direitos civis, Rio de janeiro: Cepia, 1999
Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW)
http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2018/09/49b47a6cf9185359256c22766d5076eb.pdf>
http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/93/cd_2010_caracteristicas_populacao_domicilios.pdf Acesso em 16. maio .2017.