Justiça reprodutiva: Pelos direitos de todas as mulheres e suas comunidades

Com Belle Damasceno

A falta de direitos reprodutivos afetava, e ainda afeta, de maneira muito diferente as mulheres brancas de classe média e alta em relação às mulheres negras

Quando falamos em direitos reprodutivos, estamos falando de temas como acesso a informações e meios para ter ou não filhos, direito de escolha, promoção de saúde para mulheres, maternidade segura, entre outros. Segundo a socióloga e mestre em Antropologia Belle Damasceno, essas questões se relacionam com o valor da Dignidade Humana e ganham contornos diferentes para mulheres negras brasileiras em relação às mulheres brancas de classe média e alta. Por isso a importância, neste contexto, do conceito de “justiça reprodutiva”.

A convite do Usina de Valores, Damasceno aborda o significado de justiça reprodutiva, retoma o histórico dessa luta a partir do engajamento e necessidades de mulheres negras e explica como é um conceito importante para toda a comunidade.

“Os direitos reprodutivos não dizem respeito somente às mulheres, dizem respeito à possibilidade do acesso a direitos de toda comunidade negra. É, sobretudo, uma luta pela dignidade humana das pessoas negras, pobres, indígenas e pessoas vulnerabilizadas socialmente e economicamente”

Quais são os direitos reprodutivos 

Damasceno elucida que em 1995, na Conferência sobre População e Desenvolvimento, no Cairo, que os direitos reprodutivos foram definidos e incorporados dentro do rol de direitos humanos, a partir do entendimento dos problemas ao redor do mundo naquele contexto após o fim da Segunda Guerra Mundial. A partir dessa conferência, foi elaborado um Programa de Ação recomendado à comunidade internacional no qual constava, entre os objetivos e metas: “promover a saúde da mulher e a maternidade segura; alcançar uma rápida e substancial redução na morbidade e na mortalidade maternas”. 

Assim, lideranças reunidas estabeleceram o compromisso com a saúde e o bem-estar da mulher, a redução da quantidade de mortes e a morbidade decorrentes de aborto inseguro; a melhoria da saúde e do estado de nutrição da mulher, especialmente da mulher grávida e que amamenta. Também foi recomendado que os países investissem em planejamento familiar e educação, especialmente para os/as jovens. “É válido lembrar que, nessa Conferência do Cairo, o aborto foi reconhecido como uma questão de Saúde Pública e todos os países que participaram dela assumiram responsabilidades compatíveis com as problemáticas que envolvessem a não garantia dos direitos das mulheres”, esclarece a especialista.

Os direitos reprodutivos ficaram definidos como: 

  • Direito das pessoas de decidirem, de forma livre e responsável, se querem ou não ter filhos, quantos filhos desejam ter e em que momento de suas vidas. 
  • Direito a informações, meios, métodos e técnicas para ter ou não ter filhos. 
  • Direito de exercer a sexualidade e a reprodução livre de discriminação, imposição e violência.

A luta das mulheres brasileiras e suas diferentes problemáticas

Damasceno localiza o movimento de mulheres brasileiras como grande impulsor do reconhecimento dos direitos reprodutivos e sexuais como direitos humanos das mulheres. Ela conta que no Brasil da década de 1980 esse movimento foi gerenciador de calorosas reivindicações e conquistas, quando começaram a ser implantadas no país políticas públicas voltadas à saúde da mulher.

A socióloga pontua que a falta de direitos reprodutivos afetava, e ainda afeta, de maneira muito diferente as mulheres brancas de classe média e alta em relação às mulheres negras:

“Se as mulheres brancas e de classe média/alta no Brasil lutavam pela legalização do aborto para conquistar a autonomia de seus corpos e o direito de escolher quantos e em que momento teriam filhos e filhas, as mulheres negras estavam lutando para não morrer ao realizar abortos de forma insegura.”

Usando dados atuais, ela cita que, apesar do aborto não ser legalizado no Brasil, o Sistema Único de Saúde realizou, no ano de 2020, mais de 80.948 curetagens para finalizar abortos. “Ou seja, mesmo sendo ilegal, as mulheres continuam abortando e a consequência disso é a morte de milhares de mulheres que não têm como pagar por um processo de qualidade e se submetem a processos desumanos, violentos e em lugares insalubres com profissionais não qualificados (as), sendo a maioria dessas mulheres negras”, explica.

Ela ressalta que, enquanto também a luta pela legalização do aborto era e é legítima diante das demandas de emancipação e autonomia das mulheres brancas, as mulheres negras ainda lutam pelo direito de parir. “Por consequência do não acesso a outros direitos básicos regidos pela dignidade da pessoa humana, o acesso a seus direitos reprodutivos são limitados a todo momento, onde muitas dessas mulheres deixam de desejar ter filhos e filhas para que não sejam submetidos às mesmas condições de vida que passaram, não somente pelo machismo e sexismo, mas também por um fator estruturante em suas vidas, que é o racismo”.

Foi reconhecendo que, por ocuparem na sociedade desvantagens sociais por consequência do racismo, as mulheres negras brasileiras elaboraram, no ano de 1993, a Declaração de Itapecerica da Serra. Antes mesmo da Conferência do Cairo de 1994 que definiu os direitos reprodutivos, esta declaração já anunciava a liberdade reprodutiva como “essencial para as etnias discriminadas”, cobrando do Estado brasileiro a garantia dos direitos reprodutivos de forma que “as mulheres negras pudessem exercer a sua sexualidade e seus direitos reprodutivos controlando a sua própria fecundidade, decidindo se queriam ter ou não ter os filhos que desejassem”.

A importância da Justiça Reprodutiva

O termo “Justiça Reprodutiva” foi um dos ganhos da Conferência do Cairo de 1994, defende Damasceno. Como explica, ele foi cunhado por mulheres negras norte-americanas: “Em sintonia com as mulheres negras brasileiras, perceberam que somente falar de Direitos Reprodutivos deixaria de fora as injustiças sociais que alcançam mulheres negras, e que falar somente de Justiça Social, talvez, deixasse de fora também as questões reprodutivas”. O conceito é interseccional, ao levar em conta simultaneamente questões de raça, classe e gênero, e reconhece que direitos reprodutivos não podem estar apartados de direitos básicos fundamentais. 

Belle Damasceno finaliza destacando a profundidade do alcance deste conceito tão necessário pela dignidade humana:

“Importante destacar que o termo Justiça Reprodutiva é um conceito que amplia o debate para além da mulher negra. Os direitos reprodutivos não dizem respeito somente às mulheres, e sim à possibilidade do acesso a direitos de toda comunidade negra. É, sobretudo, uma luta pela dignidade humana das pessoas negras, pobres, indígenas, e pessoas vulnerabilizadas socialmente e economicamente.”

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Artigo: Dignidade Humana e direitos reprodutivos: Uma questão de Justiça Reprodutiva, por Belle Damasceno

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