Dignidade Humana e Direitos Reprodutivos: Uma questão de Justiça Reprodutiva

Por Belle Damasceno¹

Falar em “dignidade humana” é retomar as características que deveriam reger qualquer Estado Democrático de Direito. Isso porque a dignidade da pessoa humana é um princípio da democracia, na qual o Estado respeita (ou deveria respeitar) e garante (ou deveria garantir) os direitos humanos e os direitos fundamentais dos seus cidadãos e cidadãs. Dito isso, trago a seguinte reflexão: se os direitos básicos, tidos como direitos fundamentais, como o direito à vida, à segurança, à igualdade de direitos e obrigações entre homens e mulheres; e os direitos sociais, como o direito à educação e ao trabalho, a garantia de acesso à saúde, ao transporte, à moradia, à segurança, à alimentação, o direito à proteção às crianças, à maternidade, entre outros, são direitos que partem desse princípio da dignidade humana, a falta de acesso a eles influencia diretamente a dignidade de determinadas pessoas que, por diversos motivos, não acessam tais direitos e/ou quando os acessam é de forma restrita ou até mesmo precarizada. 

Segundo Siqueira (2006), a dignidade da pessoa humana é pautada na Constituição Brasileira de 1988 a partir do respeito e acesso aos direitos, liberdades e garantias pessoais, e aos direitos econômicos, sociais e culturais comuns a todas as pessoas. Nesse sentido, a não garantia de determinados direitos sociais básicos compromete outros direitos que precisam estar alinhados com esses a fim de garantir o bem-estar das pessoas e a possibilidade de exercerem o que lhes é de direito. Por exemplo, se uma mulher deseja ter filhos e filhas (ou não) e não tem um emprego, não consegue ter uma segurança alimentar, acesso às políticas de saúde pública, não possui moradia, não tem acesso ao mínimo que garanta uma qualidade de vida. Tudo isso afeta diretamente outros direitos que estão no campo da reprodução, comprometendo, assim, o que chamamos de Direitos Reprodutivos, os quais não dizem respeito somente às mulheres cis e nem somente à gestação e à maternidade, mas, sim, a um conjunto de direitos ligados aos processos reprodutivos. 

Nesse sentido, os direitos reprodutivos (bem como os sexuais) das mulheres, mesmo sendo na maioria das vezes associados apenas às questões de saúde reprodutiva e saúde sexual da mulher, e muitas vezes vinculados apenas à maternidade, estão associados ao cumprimento de direitos básicos de sobrevivência e que garantam qualidade de vida às mulheres. Os direitos de dimensão social, como aqueles relativos à saúde, educação, segurança e moradia, têm como finalidade proporcionar as condições e os meios necessários para a prática livre, saudável e segura das funções reprodutivas e sexuais. Por isso é importante adentrar no debate dos direitos reprodutivos, observando a noção dos limites da dignidade humana para determinadas pessoas, sobretudo quando essa dignidade é discutida tendo em vista as questões de gênero, raça e classe.

Direitos Reprodutivos e a Luta das Mulheres no Brasil

 Após a Segunda Guerra Mundial, as discussões sobre direitos sexuais e direitos reprodutivos como direitos humanos foram enraizadas em discursos políticos internacionais sobre os problemas que atingiam todo o mundo. Em 1994, na Conferência sobre População e Desenvolvimento, no Cairo, foram incorporados e definidos os conceitos de direitos reprodutivos, bem como de saúde sexual, dentro do rol dos direitos humanos, o que foi confirmado em 1995 na 4ª Conferência da ONU sobre Mulheres, em Pequim².

 A partir dessa conferência foi elaborado um Programa de Ação recomendando à comunidade internacional uma série de importantes objetivos a serem alcançados sobre população e desenvolvimento. Entre esses objetivos e metas estavam: promover a saúde da mulher e a maternidade segura, e alcançar uma rápida e substancial redução na morbidade e na mortalidade maternas. Ainda a partir dessa mesma conferência, lideranças reunidas estabeleceram o compromisso com a saúde e o bem-estar da mulher, a redução da quantidade de mortes e morbidades decorrentes de aborto inseguro; e a melhoria da saúde e do estado de nutrição da mulher, especialmente da mulher grávida e que amamenta. Também foi recomendado que os países investissem em planejamento familiar e educação, especialmente para os/as jovens. É válido lembrar que, nessa Conferência do Cairo, o aborto foi reconhecido como uma questão de Saúde Pública e todos os países que participaram dela assumiram responsabilidades compatíveis com as problemáticas que envolvessem a não garantia dos direitos das mulheres (CAIRO, 1994). 

Após a referida conferência, os direitos reprodutivos ficaram definidos como: 

  • Direito das pessoas de decidirem, de forma livre e responsável, se querem ou não ter filhos, quantos filhos desejam ter e em que momento de suas vidas. 
  • Direito a informações, meios, métodos e técnicas para ter ou não ter filhos. 
  • Direito de exercer a sexualidade e a reprodução livre de discriminação, imposição e violência.

O movimento de mulheres brasileiras, grande impulsor do reconhecimento dos direitos reprodutivos e sexuais como direitos humanos das mulheres, continha em sua agenda política reivindicações – tais como maior inserção e autonomia na política e maior controle sobre a fecundidade – que questionavam os papéis tradicionais dos homens e mulheres na sociedade, os quais retiravam da mulher o direito de pensar e refletir sobre questões relacionadas à vivência e ao livre exercício da sexualidade, já que o pensar acerca do prazer sexual era voltado apenas para os homens. Mas o movimento das mulheres não estava restrito apenas a essas questões, enfatizava também a atuação no combate à violência contra a mulher e a luta pela igualdade no mercado de trabalho, pela paridade de direitos trabalhistas e pela igualdade legal no âmbito da família. No que diz respeito a esse último ponto, reivindicava-se o direito da mulher de decidir sobre sua fecundidade diante da maternidade compulsória, pauta que conferiu centralidade à descriminalização do aborto.

No Brasil, na década de 1980, esse movimento gerou calorosas reivindicações e conquistas. As discussões em torno de conceitos como saúde e direitos reprodutivos no Brasil se ampliaram, em especial a partir da maior presença de mulheres em partidos políticos, instituições estatais, ONGs feministas e agências internacionais. Nesse período, devido às ações lideradas por movimentos de mulheres, começaram a ser implantadas no país políticas públicas voltadas à saúde da mulher (DAMASCO, 2017). 

Longe de negar a importância dos avanços obtidos pelo movimento de mulheres e pelos movimentos feministas, era e é importante também reconhecer que existia uma camada de mulheres brasileiras para as quais as reivindicações eram movidas por necessidades básicas e que ainda assim não eram supridas. Nesse momento era necessário que o movimento de mulheres que encabeçou a luta no Brasil, formado majoritariamente por mulheres brancas e de classe média, reconhecesse que as mulheres negras vivenciavam experiências diferenciadas, como apresentam Emanuelle Goes, Hanna Moore e Juliana Figueiredo (2014) em artigo:

A intersecção de raça e gênero conforma as mulheres negras uma situação de opressão e vulnerabilidades, apresentando experiência e trajetória de vida que diferencia das mulheres brancas, por exemplo, pois, o racismo é estruturante no que se refere às condições de vida da população negra, sendo a mulher negra um sujeito que sofre o racismo com o agravamento do sexismo e outras opressões correlatas.

Nesse sentido, se as mulheres brancas e de classe média e alta no Brasil lutavam pela legalização do aborto para conquistar a autonomia de seus corpos e o direito de escolher quantos e em que momento teriam filhos e filhas, as mulheres negras estavam lutando para não morrer ao realizar abortos de forma insegura, pois, sobre esse ponto, sabe-se que, mesmo o aborto não sendo legalizado no Brasil, o SUS realizou no ano de 2020 mais de 80.948³ curetagens como método para finalização de abortos. Isso significa que, mesmo sendo ilegal, abortos continuam ocorrendo e a consequência disso é a morte de milhares de mulheres que não tem como pagar por um processo de qualidade e se submetem a processos desumanos, violentos e em lugares insalubres com profissionais não qualificados (as), sendo a maioria dessas mulheres negras. Ainda nesse sentido, enquanto a luta pela legalização do aborto era e é legítima diante das demandas de emancipação e autonomia das mulheres brancas, as mulheres negras ainda lutam pelo direito de parir, pois, como exposto até aqui, por consequência do não acesso a outros direitos básicos pautados pela dignidade da pessoa humana, o acesso a seus direitos reprodutivos é limitado a todo o momento, e muitas dessas mulheres deixam de desejar ter filhos e filhas para que esses não sejam submetidos às mesmas condições de vida que passaram, não somente pelo machismo e sexismo, mas também por um fator estruturante em suas vidas, que é o racismo. 

A falta de direitos reprodutivos afetava, e ainda afeta, de maneira muito diferente as mulheres brancas de classe média e alta em relação às mulheres negras

Mesmo antes da Conferência do Cairo, em 1994, quando os Direitos Reprodutivos foram definidos como Direitos Humanos das Mulheres, que as mulheres negras, reconhecendo que eram submetidas a desvantagens sociais, elaboraram, no ano de 1993, a “Declaração de Itapecerica da Serra”. Segundo a autora Emanuelle Goés (2018, p. 31), essa declaração anunciava a liberdade reprodutiva como “essencial para as etnias discriminadas”, cobrando do Estado brasileiro a garantia dos direitos reprodutivos, sendo isso necessário para “que as mulheres negras pudessem exercer a sua sexualidade e seus direitos reprodutivos, controlando a sua própria fecundidade, decidindo se queriam ter ou não ter os filhos que desejassem”.

Sendo assim, desde então tem ficado cada vez mais nítida a importância de reconhecer os direitos reprodutivos como parte dos Direitos Humanos, que, por isso, dizem respeito à dignidade das mulheres, sobretudo das mulheres que vivem em extrema vulnerabilidade social, como as mulheres em situação de rua. Não dá para falar sobre dignidade humana em uma situação em que determinadas mulheres malmente acessam direitos básicos, o que as impossibilita, também, de usufruir e experienciar seus direitos reprodutivos.

 Foi nesse contexto de reconhecer que os direitos reprodutivos não podem estar apartados de direitos básicos e fundamentais que o termo “Justiça Reprodutiva” passa a incorporar as questões de Justiça Social. O termo “Justiça Reprodutiva” foi um dos ganhos da Conferência de 1994 e cunhado por mulheres negras norte-americanas. Nesse contexto, essas mulheres, em sintonia com as mulheres negras brasileiras, perceberam que somente falar de Direitos Reprodutivos deixaria de fora as injustiças sociais vivenciadas pelas mulheres negras, e, por outro lado, que falar somente de Justiça Social talvez deixasse de fora as questões reprodutivas. Por isso, se tornou importante destacar que o conceito de Justiça Reprodutiva é interseccional, já que ele foi criado, defendido, promovido e reivindicado por mulheres negras, e as questões de raça, classe e gênero são analisadas simultaneamente. 

Importante destacar que o termo Justiça Reprodutiva é um conceito que amplia o debate para além da mulher negra, analisando profundamente as questões que envolvem jovens, crianças, idosos, adultos, homens, mulheres e toda a comunidade negra, pois os direitos reprodutivos, como dito no início desse texto, não dizem respeito somente às mulheres, mas à possibilidade de acesso a direitos por toda a comunidade negra. Assim, essa luta é, sobretudo, pela dignidade humana das pessoas negras, pobres, indígenas e pessoas vulnerabilizadas social e economicamente.

Notas

¹ Belle Damasceno é socióloga pela Universidade Federal da Bahia, Mestra em Antropologia pela UFBA/PPGA, pesquisadora na Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas, idealizadora da Rede de apoio MamasPretas.

² Ver: http://www.unfpa.org.br/Arquivos/relatorio-cairo.pdf. Acesso em: 24 nov. 2022.

³ Segundo reportagem do portal de notícias G1. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2022/06/09/4-em-cada-10-abortos-legais-no-brasil-sao-feitos-fora-da-cidade-onde-a-mulher-mora-pacientes-percorreram-mais-de-1-mil-km.ghtml. Acesso em: 24 nov. 2022.

Referências:

CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. Dignidade da Pessoa Humana: o princípio dos princípios constitucionais. In: SARMENTO, Daniel; GALDINO, Flávio (Org). Direitos Fundamentais: Estudos em homenagem ao professor Ricardo Lobo Torres. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 135-179.

DAMASCO, Mariana Santos; MAIO, Marcos Chor; MONTEIRO, Simone. Feminismo negro: raça, identidade e saúde reprodutiva no Brasil (1975-1993). Estudos Feministas, Florianópolis, v. 20, n. 1, p. 133-151, maio 2012. 

GOES, Emanuelle F.; MOORE, Hanna; FIGUEIREDO, Juliana. Mulheres negras, racismo e a (não) garantia dos direitos reprodutivos. 18º REDOR, Recife, 2014.

GÓES, Emanuelle Freitas. Racismo, aborto e atenção à saúde: uma perspectiva interseccional. 105f. Tese (doutorado) – Instituto de Saúde Coletiva. Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2018.

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