A educação de crianças negras e o resgate de tecnologias tradicionais africanas

Por Carol Adesewa*

Diante de um contexto tensionado pelo racismo, gestar uma criança negra se torna uma tarefa de grande envergadura, pois, além de todas as mudanças hormonais, emocionais e físicas que ocorrem no gestar, é necessário também aprender a lidar com a insegurança de viver em uma sociedade estruturalmente desigual, que tangencia as demandas das mulheres pretas e de toda a sua comunidade (também) preta, principalmente no que se refere ao processo de educação dessa criança.

Por mais difícil que seja educar uma criança negra em um mundo ocidentalizado que nega todo o arcabouço da tradição africana, se faz necessário pensar estratégias de recentralização das narrativas de África em diferentes contextos, para que o povo negro esteja no controle das suas próprias vidas. Por isso, há a necessidade de resgatar tecnologias tradicionais africanas e afro-diaspóricas como forma de fortalecer e garantir a existência das gerações futuras.

A educação de uma criança negra não é responsabilidade apenas de sua mãe ou de seu pai, é, sim, um dever coletivo de toda a comunidade garantir que essa criança inaugure a vida e nela permaneça em segurança. Dessa forma, tomar os valores africanos como referência na diáspora é ter a consciência, principalmente, de que a centralidade da família é uma das principais bases que sustenta o movimento de retorno às nossas raízes. Negar ou se afastar da responsabilidade dessa construção torna a nossa luta por autonomia e autodeterminação ainda mais distante de ser concretizada, visto que a família ainda se encontra enfraquecida. Pensar a educação em contexto africano é pensar de forma comunitária.

Pensar a educação em contexto africano é pensar de forma comunitária.

Na Nigéria, por exemplo, a educação infantil é impulsionada por tradições orais e filosofias, tais como: provérbios, poemas, canções, cantigas populares e enigmas. É por meio da literatura oral que as famílias e toda a comunidade iorubá educam as crianças para se tornarem Omulawabi. Traduzindo, omoluwabi significa Omo ti o ni iwa ‘bi eni ti a ko ti o si gba eko: “pessoa que se comporta como alguém que é devidamente bem nutrido e que vive pelos preceitos da educação que recebeu”.

Esse trabalho coletivo tem início antes mesmo do nascimento dessa criança: durante a gestação, as mães iorubás, além de receberem orientações acerca do que beber, comer e fazer, também recebem orientações sobre o que falar para os seus bebês, mesmo que eles ainda estejam em formação dentro dos seus úteros. As mães são incentivadas a falar, recitar e cantar os nomes de louvor da família e provérbios chamados oruko ati oriki idile. Após o nascimento, a criança continua a ouvir os provérbios e os cânticos, com a intenção de que o seu bom caráter seja moldado e sua autoestima elevada.

Esse tipo de educação não acontece apenas no seio familiar. Para as culturas africanas, a ética da comunidade se contrapõe ao individualismo dos dias atuais, que atribui a responsabilidade da instrução exclusivamente às mães. Sendo assim, toda a comunidade se torna empenhada em construir uma educação que influencie diretamente no caráter daquele ser em formação.

Por meio da Pedagogia Kindezi, Fukiau (2003) discorre sobre como o cuidar de crianças é uma das tarefas mais importantes da comunidade, e como todos se empenham em exercer esse cuidado; afinal, para os Bantu, em geral, e para os Kôngo, em particular, de acordo com Fukiau: “a chegada de uma criança na comunidade é o nascer de um novo e único sol vivo”. Portanto, é responsabilidade da comunidade inteira – e dos Ndezis, em particular – ajudar esse sol vivo a brilhar.

Os Ndezis são aqueles que praticam a arte do cuidar, descrita na Pedagogia Kindezi; com os Ndezis, as crianças aprendem a ler, escrever, aprendem os nomes das coisas, aprendem sobre biologia e assuntos relacionados à fauna, flora e anatomia. Essas pessoas são reconhecidas de acordo com algumas características (são considerados, então, diferentes “tipos” de Ndezis): Jovem Ndezi, Velho Ndezi e Ndezis ocasionais, por exemplo. Com a Ndezi cuidando das crianças, a mulher africana pode exercer outras atividades em casa, no trabalho e para si mesma. Desse modo, é constituída o que chamamos hoje em dia, no Ocidente, de uma vasta e forte rede de apoio.

Tal rede de apoio, sobre a qual tanto se discute na atualidade, é uma tecnologia de cuidado ancestral. Consigo perceber dentro da minha família, por exemplo, o quanto o cuidado com os nossos, enquanto parte das nossas características culturais, filosóficas e espirituais, se perpetua. Enquanto minha mãe trabalhava, as irmãs mais velhas cuidavam de mim, tias lactantes me amamentavam, primas penteavam os meus cabelos; a vizinha me acolhia em sua casa, enquanto me rezava, expulsando o mau-olhado; e a igreja, mesmo com todos os seus problemas, também me recebia de maneira acolhedora.

Sobre essa dinâmica, Sobonfu Somé (2003) nos diz que “a família na África é sempre ampla, a pessoa nunca se refere ao seu primo como primo, porque isso, sim, seria um insulto, então ela chama os seus primos de irmãos e irmãs. Seus sobrinhos de filhos. Seus tios de pais. Suas tias de mães”. Sendo assim, penso que somos apenas continuidade de um legado ancestral que é transmitido de geração a geração.

Como é possível compreender a partir de toda a explanação já apresentada neste texto, o ambiente familiar é o primeiro espaço de socialização da criança; contudo, a escola também precisa fazer parte dessa grande aldeia que cuida e educa as crianças negras. Entretanto, historicamente, o ambiente escolar tem sido considerado hostil, pois, por vezes, a concepção educacional das escolas não reflete os corpos e a subjetividade das crianças negras, ainda que as bibliotecas tenham livros de literatura negra e os cartazes afixados nas paredes sejam representativos. As metodologias, epistemologias e concepções educacionais precisam estar em consonância com o recentramento das experiências africanas no espaço escolar.

Por isso, encontrar escolas que dialoguem com os mesmos princípios e valores que as famílias que estão em busca de resgatar a sua história torna-se um dos principais embargos encontrados nessa caminhada Sankofa. Até mesmo no próprio continente africano o processo de escolarização ainda é influenciado por teorias e metodologias importadas e, por vezes, contrárias às tradições, o que gera diferentes conflitos na infância, posto que a criança parece adentrar em um universo diferente daquele vivido em sua família e comunidade.

Surgem, então, os questionamentos: como ultrapassar essas barreiras? Como escolher a melhor escola para as minhas crianças? Será que a escola será de fato uma extensão do cuidado em comunidade? Para responder a tais inquietações, é preciso compreender o projeto político pedagógico da escola, conhecer os profissionais que pensam a educação dessa instituição, buscar escolas em que a criança possa se reconhecer em seus colegas e professores/as, em que o currículo da instituição valorize a experiência de existir na infância e que a história e cultura negra sejam centrais em seu cotidiano, contrapondo-se a um currículo euro-pedagógico-centrado.

Família, comunidade, escola e diferentes espaços de socialização precisam estar em constante diálogo quando o assunto é a educação das crianças negras. E todo esse trabalho não visa apenas blindar a criança das manifestações do racismo em nossa sociedade, posto que isso, infelizmente, não é ainda possível; mas sim construir um ambiente seguro, onde a sua experiência de ser criança negra seja respeitada a partir das nossas positivas concepções de mundo. Cabe a nós, pessoas adultas, retornar ao passado e resgatar tudo o que nos foi retirado, e viver a nossa noção de família, comunidade e infância através de um espelho autêntico, não mais através de um espelho quebrado, imposto pelo racismo. Viver o cuidado em comunidade.

Nota

*Carol Adesewa é mulher preta, baiana, escritora e professora afrocentrada, atua na rede pública de ensino de São Francisco do Conde. Idealizadora do projeto Afroinfância, projeto colaborativo de educação afrocentrada que busca contribuir com a construção da identidade e autoestima da criança negra, a partir de referências africanas e afro-diaspóricas.

Referências:

AKINSOLA, Esther F. Omoluwabi’s approach to educating the African child. In: Handbook of African Educational Theories and Practices A Generative Teacher Education Curriculum. Cameroon: Presses universitaires d’ Afrique, 2011.

FU-KIAU, K.K.B.; LUKONDO-WAMBA, A.M. Kindezi. A Arte Kongo de Cuidar de Crianças. Traduzido por Mô Maie. Terreiro de Griôs (Revista Eletrônica), 2017.

SOMÉ, Sobonfu. O Espírito da Intimidade: ensinamentos ancestrais africanos sobre relacionamentos. São Paulo: Odysseus Editora, 2003.

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