Priscilla Gadelha Moreira

A favor da vida e da liberdade? Decolonize

Por Priscilla Gadelha Moreira


“A filosofia torna possível a vida do homem, enquanto ela lhe permite imaginar, projetar o futuro e enfrenta-lo. Se as aporias da vida que nos estrangulam com a fome, a miséria, a nudez, a guerra, o analfabetismo e etc. Nos sufocam de tal maneira a não nos permitir nenhuma interpretação do mundo, e não nos fosse possível pensar um amanhã, seria terrível. O pensamento, a filosofia tornam possível o amanhã. Mas ao mesmo tempo, interroga-se sobre o tipo de amanhã.” (NGOENHA, 1993, p.12)

Em meio ao neoliberalismo e reativação da lógica das raças, a condição negra, em que a lógica de subalternidade busca se impor na categorização da humanidade, continua a desencadear ações contrárias a submissão, a depredação e a exploração, que se transformam em agências efetivas e necessárias a uma revolução que caminhe junto aos corpos oprimidos pela lógica do império do capital.

Nossas questões perpassam em como construir um modelo de sociedade com presença e inclusão de todas as pessoas e subjetividades, únicas, mutantes e pulsantes? O patriarcado, esse sistema envolvido pela lógica machista, racista e capitalista, se alimenta de vidas diariamente, onde o Deus dinheiro determina nossas construções sociais, que nos inquietam e impedem a enxergar o óbvio: como garantir a humanidade sem seres humanos?

Sim, estamos eliminando parte da nossa população por medo de atos do passado, que nos impedem de enxergar nossa história, sem a dor do arrependimento e da ressignificação, como por exemplo, propuseram os alemães pós a queda do nazismo no fim da guerra. Achile Mbembe nos alerta, que o padrão vigente não se destrói, se ocupa e nossa presença incomoda, chegando a perturbar quem tem medo de seus atos escondidos e mais perversos, por terem medo de seu julgamento.  

Calma mundo capital, apesar de todas as dores, dessabores e perversidades, nossa forma de construção e vida promove bem viver a todas as pessoas, iremos promover um novo modelo de justiça e não fiquem assustados, nossa construção fica bem distante do imposto pelo que vivemos agora, buscamos outras formas de encontro social, temos raízes abolicionistas e não entendemos esse modelo criminal e perturbador como prática vigente em nenhum momento.

Não esperem de nós o que o sistema capitalista nos impôs!

Através do discurso, encontramos os pilares do modelo hegemônico, quer perpassam pela desigualdade, miséria e morte, se apresentando aparentemente funcional a todas as pessoas, porém adoecedor e mortífero. O patriarcado branco e burguês teme o modelo reverso, pois em seu modelo ideológico de sociedade, a doença, a insegurança e o medo são estruturantes para o controle e escravidão da população.  Lembrem-se tudo que foi prático e pregado por esse modelo não nos representa e nossa luta é por um novo formato de vida.

Ao perceber qualquer sinal de ascensão das populações oprimidas, a sociedade hegemônica, que não aceita o plural e o diverso, se prepara mais uma vez para destruir o inimigo. Na lógica de proteção, apresenta sua maior força: a intolerância, que se une a violência extrema, não apenas no discurso, na prática. Para proteger a norma atual, não aceitam ascensão e empoderamento das massas silenciadas, o medo do novo e da sensação de vingança, posta pela intolerância, impede de ouvir e enxergar o que já estamos criando, justiça com igualdade.

Construímos igualdade com justiça social, construímos um mundo antirracista, pois não aceitamos a legitimidade da faca afiada do estado sobre os corpos negros, sobre os corpos das mulheres, sobre os corpos LGBTQI+.

No momento político brasileiro, que se alia a um nacionalismo forjado, busca objetos para própria confirmação e continuidade da submissão de nossos corpos. Assistimos a queda de um modelo que insiste em continuar na negação do passado, na ressignificação do presente e na possibilidade de construção de um futuro, por submissão, medo e descrédito na própria população.

Ainda não permitimos falar com verdade e inteireza sobre os processos da ditadura brasileira de 64 a 85, aos 300 anos de escravidão da população negra, que nos boicotou caminhos e histórias, a não provocar políticas de ascensão a terra e renda, ou trazer à tona, a destruição realizada pelos colonos ao dizimar e tentar eliminar a existência indígena no Brasil e em toda América Latina.

Durante nossa construção democrática dos últimos trinta anos, acessamos brechas e caminhos empregados pelo modelo vigente, como também ações, práticas e estratégias de como devemos usar, ocupar e resistir. Relembrando Ochy Curiel, teórica feminista e antropóloga social afro-dominicana, temos que ter enraizada em nossa prática que o caminho contínuo do imperialismo é um exercício constante de poder e monopolização, que associado ao sistema de representações, se estrutura por configurações e estruturas ideológicas, pautadas em supostas essências e criações, que permeiam majoritariamente sobre a vida das mulheres e das pessoas negras, onde busca justificar a opressão e a dominação de gênero e raça, perpetuando assim o projeto de poder.

Quis o tempo da história nos convocar a estar aqui, nos provocar a ser e a perceber a ascensão do capitalismo bélico em meio a primavera feminista no mundo. Estamos em disputa, em todos os cantos do globo e no Brasil não seria diferente, com a ascensão do conservadorismo, unido as forças autoritárias e a guerra santa posta entre as bases das igrejas, o cristianismo em disputa junto com o capitalismo patologizado, higienista e aniquilador. Sim camaradas, temos um papel central de mudança na rota do nosso país e do nosso continente.

Em tempos obscuros e de força bruta, precisamos estar mais conectadas do que sempre. Estamos no mundo para construção do Bem Viver, no direito a vida e a justiça social.

Agora, mascarado em meio a armas, se camufla com gritos e bandeiras o patriarcado, usando a mais vil das forças, o armamento com pólvora, a brutalidade e a aniquilação de subjetividades.

Nossos corpos estão na ativa, estamos vivas e temos história, porém nosso corpo não sobrevive a força brutal e violenta dos fuzis e bombas colocadas para supostamente proteger a sociedade e tentar deslegitimar os direitos humanos. Não existe proteção a quem defende gente, não existe Estado que proteja corpos e mentes dissidentes da essência criada pelo projeto de poder, pois para eles pode ser feito um corte entre o que deve viver e o que se deve morrer, a necropolítica existe e vem tomando cada vez mais forma em nosso território.

Devemos continuar trazendo a tona tudo que foi posto, colocar em pauta nossas vivências e discussões, ampliarmos horizonte e usarmos da nossa maior conquista, a educação e o conhecimento, deve ser nossa marca registrada junto à formação e continuidade de uma educação para liberdade e para autonomia, assim nos ensinou nosso patrono da educação, Paulo Freire.

Usemos do tempo, a temporalidade além de nossos olhos, caminhando em direção a um horizonte de busca coletiva pela compreensão e escuta. Temos um mundo a construir e ele se dá por uma relação contínua com a cultura popular, acolhendo, escutando e executando as aspirações de seus corpos vibrantes.

Criar possibilidades de soluções as classes trabalhadoras e seu desenvolvimento, promovendo em paralelo à ascensão cultural e estética, com coerência e rigor necessário para ruptura entre o senso comum e o bom senso. Precisamos diagnosticar a realidade e seus significados, desnaturalizando o que e quem os habita, desde as instituições, as formas de pensamento e as subjetivações.

A teoria feminista decolonial nos ensinou.

A ocupação colonial da modernidade é uma cadeia de múltiplos poderes: disciplinar, “biopolítico” e “necropolítico. A combinação destes poderes permite o domínio absoluto sobre os habitantes da cidade, da comunidade e da terra conquistada. Ocupar territórios é resistir, mas principalmente continuar sendo. Vamos aquilombar as instituições, as vidas e os corações.

Temos formas,  estratégias de sobrevivência e resistência desde sempre, necessitam mais do que nunca de amplitude desde a prática a criação de metodologias acessíveis e viáveis, que envolvam as mulheres,  a população negra e a massa trabalhadora.

Que sejam tempos de busca, escuta e encontro, que possamos interseccionar o necessário e construir caminhos decolonizados, fora da margem e distante da norma, sejamos como na clínica peripatética, de Antônio Lancetti, uma vivência em passear, ir e vir.

O novo mundo é possível, mas antes precisamos desenrolar esse novo começo. Um lugar sem fronteiras, uma construção inteira, com compromisso internacional em decolonizar traços que se apresentam como obstáculos ao nosso desenvolvimento.

O cotidiano precisa ser escutado e potencializado em sua rotina diária, na rua, no campo, na cidade ou na pista, acessando nosso plural, diverso e divino, todas as mulheres, raças e etnias, populares, trabalhadoras, silenciadas e tornadas marginalizadas.  

“um futuro diferente não cairá do céu. Ele será o que nós fizermos, coletivamente; ele será resultado de atos políticos.” (NGOENHA, 2004, p.44)

Não há espaço para silenciamento ou aniquilação de história, as experiências de classe social e localização geográfica de todas as mulheres tornadas distantes da narrativa feminista são ponte central para renovação do pacto popular. Tentar limitar o potencial político dessas mulheres é alimentar subordinação em relação a outras mulheres. Saberes e práticas são formas de conhecimento legítimo e deve ser o lugar de enfrentamento aos novos velhos tempos, que se apresentam neste século.

O poder religioso e militar sempre esteve na base da pirâmide controlando e moldando nossos corpos, assim como outras formas de violência e exploração que perduram até hoje. Mas do que responder, este momento surge para nos inquietar,  repensar e criar.

Criar caminhos, construir novos e desconstruir outros, algumas brechas que podem nos servir para organizar idéias e pensamentos, ações e amarrações, porém, trazer luz e compressão ao nosso lugar no presente, que defende uma compreensão anticapitalista, antirracista e feminista, em prol dos direitos de todos os humanos, criando, recriando e subvertendo fronteiras, traduzindo novas subjetividades e formas de vida.

  • Priscilla Gadelha Moreira (CRP 02 12904) – Supervisora em psicologia Clínica, Especialista em Análise Bioenergética, com formação internacional pelo IIBA (Instituto Internacional de Análise Bioenergética), junto ao Libertas Clínica Escola. Conselheira do Conselho Regional de Psicologia (CRP 02) e atualmente, Presidente do Conselho Estadual de Políticas sobre Drogas de Pernambuco/Cepad. Articuladora da Rede Nacional de Feministas Antiproibicionista/Renfa e Redutora de Danos, no Movimento Brasil de Redução e Danos.

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