Ailce Moreira de Melo

Direitos Humanos: universalidade e coletividade em xeque

Por Ailce Moreira de Melo

Como abordar, de forma introdutória, os Direitos Humanos? Principalmente, quando o público  da sala de aula é formado, em sua maioria, por militantes humanistas? Essa foi a pergunta que me fiz quando fui convidada para mediar o encontro da primeira aula do curso do projeto Usina de Valores, em Recife, neste ano de 2019, juntamente com Christine Lima. Parecia-me que o desafio era tratar da temática de forma reflexiva e provocadora, sem, no entanto, cair no lugar comum de apenas e tão somente afirmar a importância da garantia dos mesmos, embora isto também seja fundamental no momento político que o Brasil e grande parte do mundo atravessam.

A partir dessa inquietação e de alguns questionamentos e pontos convergentes que surgiram nas discussões desse primeiro encontro da turma, é que saltam os conteúdos deste texto; o que aponta para uma escrita que não faço sozinha, mas com a contribuição de muitas mãos, mentes e corações.

Começamos, então, pela Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), publicada no ano de 1948, pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em Paris, França. Ao analisar esse texto, que se encontra facilmente disponível na internet, a primeira indagação que podemos fazer está relacionada a algumas das expressões encontradas no documento, como: “todos os membros da família humana”, “todos os povos e todas as nações”, “todos os seres humanos”, “todos são iguais”, “todo ser humano” e sua equivalente contraditória “ninguém”, ao abordar pontos negativos. Afinal de contas, 70 anos após a publicação da DUDH, é possível perguntar: quem são todas as gentes? E que “todos” a Declaração alcança?

A DUDH parte do pressuposto de que os direitos nela acordados serão considerados inerentes, fundamentais, inalienáveis e indivisíveis a todo e qualquer ser humano que viva em sociedade e, portanto, seja constituído sujeito de direito. Mas será? É assim?

Primeiramente, é necessário localizar a DUDH temporal, territorial e historicamente. O documento foi elaborado e produzido na Europa, no período pós-Segunda Guerra Mundial, quando aquele continente, que em tantos momentos históricos anteriores dominou grande parte dos territórios globais, se viu devastado.

O terror dos grandes massacres do início do séc. XX (dos armênios pelos turcos, em 1915; e dos judeus pelos nazistas, durante a Segunda Guerra) pairava sobre as sociedades que durante séculos julgaram-se superiores ao restante do mundo. Práticas genocidas, que cruelmente foram perpetradas por estes povos e, mais tarde, pelos Estados Unidos, principalmente contra sociedades latino-americanas, africanas e asiáticas, sem causar nenhum tipo de incômodo com o exercício da opressão, subjugação e morte de seres humanos (povos inteiros, inclusive), finalmente, atingiram o continente europeu, envolvendo as grandes potências econômicas mundiais.

A DUDH surge, então, quase que como uma luz no fim no túnel; a instituição de um novo momento mundial; uma nova era que pretendia deixar o passado para traz e reinaugurar a história a partir da igualdade e da dignidade humana.

Todavia, é possível afirmar que partir da premissa de que “todo mundo é igual” já é começar a trajetória de um ponto que carrega em si a noção da desigualdade. Explico: não é razoável, a partir de determinado momento histórico, apagar ou não considerar as especificidades de cada povo, organização social ou sujeito. E mais ainda: desconsiderar as dívidas históricas causadas pelos processos de colonização, escravização e etnocídios. Não. As nações e povos não são iguais; não estão vivenciando os mesmos processos; e, um dos aspectos mais importantes: não são tratadas internacionalmente de forma igualitária, ou melhor, equitativa. O mesmo podemos perceber em relação à diversidade entre os sujeitos.

Ao observar mecanismos estruturais elaborados e implementados nas diversas culturas e organizações dos Estados que perpetuam relações de exploração, injustiça, opressão e desigualdades, principalmente em relação àqueles minorizados (pois, a rigor, sequer são minorias, como mulheres, negros e pobres), é possível perceber que a universalidade da DUDH não é tão universal assim. Ou seja, não atinge a todos e todas de forma igualitária como deveria.

Dessa forma, a existência da Declaração e a concordância com a mesma pelos diversos países signatários não são suficientes para garantir o cumprimento desses direitos e esse fato aponta para a noção de que nenhum direito é absoluto. Por mais que seja previsto, não é garantido no momento do nascimento de todo e qualquer homem ou mulher. No fim das contas, até hoje, classe, gênero, cor, orientação sexual, religião ou qualquer fator que evidencie diferenças e singularidades entre seres humanos são aspectos discriminatórios na maioria das organizações sociais e determinantes quando o quesito em questão é acesso a direitos fundamentais.

Sendo assim, é preciso entender que garantia de direitos implica luta. Se hoje, no Brasil, ainda há o gozo de alguns direitos por parte da classe trabalhadora, mulheres, deficientes, idosos, crianças e adolescentes, povos originários (indígenas e quilombolas), negros e comunidade LGBTQI+ é porque muito suor e sangue foram derramados para que chegássemos até aqui.

Nesse momento, vou pedir licença para partilhar com vocês um texto da juíza federal Raquel Domingues do Amaral, que trata poética e explicitamente o assunto de que falamos agora:

“Sabem do que são feitos os direitos, meus jovens? Sentem o seu cheiro?
Os direitos são feitos de suor, de sangue, de carne humana apodrecida nos campos de batalha, queimada em fogueiras! Quando abro a Constituição no artigo quinto, além dos signos, dos enunciados vertidos em linguagem jurídica, sinto cheiro de sangue velho!
Vejo cabeças rolando de guilhotinas, jovens mutilados, mulheres ardendo nas chamas das fogueiras! Ouço o grito enlouquecido dos empalados. Deparo-me com crianças famintas, enrijecidas por invernos rigorosos, falecidas às portas das fábricas com os estômagos vazios!
Sufoco-me nas chaminés dos Campos de concentração, expelindo cinzas humanas!
Vejo africanos convulsionando nos porões dos navios negreiros. Ouço o gemido das mulheres indígenas violentadas. Os direitos são feitos de fluido vital!
Pra se fazer o direito mais elementar, a liberdade, gastou-se séculos e milhares de vidas foram tragadas, foram moídas na máquina de se fazer direitos, a revolução!
Tu achavas que os direitos foram feitos pelos janotas que têm assento nos parlamentos e tribunais? Engana-te! O direito é feito com a carne do povo!
Quando se revoga um direito, desperdiça-se milhares de vidas…
Os governantes que usurpam direitos, como abutres, alimentam-se dos restos mortais de todos aqueles que morreram para se converterem em direitos!
Quando se concretiza um direito, meus jovens, eterniza-se essas milhares de vidas! Quando concretizamos direitos, damos um sentido à tragédia humana e à nossa própria existência!
O direito e a arte são as únicas evidências de que a odisseia terrena teve algum significado!”

A ameaça cotidiana que o atual governo brasileiro representa para a revogação de muitos de nossos direitos é a prova de que os direitos humanos e quaisquer outros não são uma doação para a humanidade, mas sim, conquistas. E como conquistas, devem ser pleiteados de forma coletiva, a partir do reconhecimento de que a participação de cada sujeito é importante na construção ativa de direitos junto ao Estado. Como afirma Eliane Brum, no texto EU + UM + UM + UM+: A responsabilidade de cada um na luta contra a destruição do Brasil, a ideia neoliberal de que é suficiente a garantia das liberdades individuais, presente, inclusive, no texto da DUDH ao preconizar a esfera individual em detrimento da coletiva, não favorece nem assegura a construção de uma sociedade equitativa e justa. De forma contundente, ela afirma:  

“Tudo o que os déspotas temem é que sejamos +um. E tudo o que querem é que sejamos apenas um. O neoliberalismo incutiu nas mentes das pessoas que ser ‘um’ é melhor. Você é um, faz o que quer e todos os outros que se explodam. Essa é a racionalidade que sustenta os atos de Bolsonaro e do seu grupo. Vale o eu, só importa o meu. Ou só importam eu e a minha família. Ou eu e a minha turma. A comunidade que se exploda. O neoliberalismo infiltrou nas mentes que ser +um é ser desimportante. Porque ser +um é ser junto com o outro, é ser na comunidade, é exercer a solidariedade, é fazer soma para ser mais forte conjugando o coletivo. Ser +um é ser na relação com outro. Já ser um é consumir sem limites, sem se importar com o planeta que todos habitam, é esgotar o hoje sem se importar com o amanhã. Ser um é tão abominável que nem com o futuro dos próprios filhos é capaz de se importar, porque sua satisfação contínua como indivíduo é tudo o que importa. Ser +um é saber que todos os outros importam. O um constrói fronteiras e muros. O +um derruba cercas para alcançar a mão do outro, mas negocia limites mútuos porque sabe que não pode nem quer viver sozinho.”

Diante da importância e potência do que foi exposto, podemos inferir que as questões apresentadas aqui são próprias do nosso tempo, localizadas territorialmente na América Latina e temporalmente no século XXI; inquietações de quem olha para a DUDH, 70 anos após sua publicação, e propõe novos olhares sobre ela, sem desmerecer sua contribuição fundamental para a humanidade, mas sem esquecer também todas as ditaduras latino-americanas que se concretizaram pós-assinatura da mesma ou os países que até hoje são colônias europeias ou norte-americanas.

As perguntas que fazemos hoje não são as mesmas que foram feitas em 1948; provavelmente, não fariam sentido naquele momento histórico. Entretanto, não podemos deixar de fazê-las agora, entendendo o nosso contexto, os interesses envolvidos e os desafios deste tempo.

O exercício de sonhar e agir em prol da concretização de uma sociedade segura, justa, equitativa, na qual seja possível a todos e todas desfrutar da paz, alegria e liberdade passa, necessariamente, pelo não abandono do passado, da história. Não é possível inaugurar uma nova história de justiça, desconsiderando tudo o que integra a trajetória humana. Assim, é preciso manter sempre viva a memória. O conhecimento histórico joga luz sobre os caminhos à frente, direcionando-nos para a conquista da garantia de direitos, hoje e para as gerações futuras.

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