E então, cumé que a gente fica?

Por Larissa Neves (Educadora do Usina de Valores)

– Mainha, vem cá vê! Parece que a senhora não vai poder faxinar mais não!

– Oxe menina! É o que? Onde você viu isso? Por causa do tal do Coronavírus?

– É mainha, não pode. Como é que a senhora vai pra casa de dona Diva se o filho dela tava nos Estados Unidos, que é fora do Brasil e tem um monte de caso lá? A senhora tem que ficar quieta em casa!

– Quieta? Eu? Ah, tá! Se eu ficar quieta dentro de casa, a gente não come.  Eu vou dá é um jeito nisso, não posso ficar sem trabalhar.

– Ligue para ela e pergunte como vai ficar a situação da senhora, mainha.

– Filha, tenho vergonha. Vou ligar e falar o que? “Olhe dona Diva, por causa do coronavírus eu não vou trabalhar, vou ficar isolada e gostaria de receber meu dinheiro, viu?”

– É desse jeito mesmo dona Judite. A senhora não tem medo? Ligue!

– Filha, medo eu tenho, mas tudo isso vai passar! Já vivi foi tanta coisa, tenho certeza de que isso vai passar. 

– Também acho que vai, mas a senhora não pode se expor. Se pegar a doença, quem vai cuidar? O SUS vai ficar lotado mainha. Ninguém vai olhar pra gente não. Família preta, da favela, vão é rir.

– É, você tem razão. A gente não é que nem eles lá. Eu vou ligar pra garantir, minha filha.

Diálogo fictício pra falar de vida real: Foi decretado no mundo estado de Pandemia e com isso o isolamento social, devido ao novo coronavírus. No Brasil, nós, negros temos apresentado maior vulnerabilidade frente a doença, quando comparado às pessoas brancas. Ainda que, segundo dados do Ministério da Saúde, pretos e pardos representam 1 em cada 4 internamentos por covid-19, o mesmo estudo aponta que somos os mais propícios a ter a doença, devido a desigualdade social e doenças associadas. Dessa forma, evidenciando como o racismo é usado como linha de decisão de quem morre, já que grande parte das pessoas que servem aos serviços essenciais tem cor e não tem a  oportunidade de escolher entre manter o isolamento social ou seus empregos. É gente que não tem água, não tem dinheiro pra comer, não tem dinheiro pra comprar álcool em gel, é gente que não tem tempo para escolher, mas que como dona Judite, acredita que vai passar por que já viveu tantas outras situações difíceis que quando é questionada pela repórter de TV, porque está na rua, tapa a cara com vergonha de dizer: – eu preciso comer.

Reverenciando Lélia Gonzalez no título do texto, trago à tona o pensamento dessa intelectual negra brasileira que denunciou o racismo e o sexismo que acomete a população preta brasileira. Gonzalez (1983) elucida que “A primeira coisa que a gente percebe, nesse papo de racismo é que todo mundo acha que é natural. Que negro tem mais é que viver na miséria.” Vale a pena dizer que o  racismo não se trata apenas de um ato discriminatório, ou de um conjunto de atos, mas de um processo de condições de subalternidade e de privilégios distribuídos entre grupos raciais distintos que são reproduzidos nos âmbitos da política, da economia e do cotidiano. Antes de se apresentar como discurso, é um fenômeno que assegura que pessoas de grupos considerados subjugados sejam julgadas a partir dos estereótipos associados àquela identidade.

Nesse sentido, é necessário pôr em evidência que o racismo no Brasil tem uma direção bem definida. Aqui, não se identifica um homem branco como um branco, servindo de justificativa para algo que tenha feito. Homens brancos não perdem vaga de emprego por serem brancos, pessoas brancas não são apontadas como “suspeitas” de atos criminosos pela sua condição racial, pessoas brancas não têm sua capacidade intelectual questionada devido a cor da pele. Estes são alguns exemplos, ao contrário, do cotidiano da população negra brasileira. Quanto mais escuro, quanto mais longe da tonalidade branca for sua pele, mais limites serão impostos à sua socialização. O racismo brasileiro está ligado àquilo que se vê. Não importa se o seu avô é negro ou branco, mas o que seus traços físicos evidenciam é o que será levado em conta. Está presente no imaginário social uma narrativa pronta, permeada de crenças e valores sobre o que é ser negro, tirando a possibilidade dos mesmos de se apresentarem. Histórias que estão associadas à sua cor e às possíveis vivências compartilhadas do seu povo no processo violento ao qual esteve inserido, e neste caso, delineado pela visão do opressor.

As práticas racistas levam à segregação racial, ou seja, a divisão espacial de raças nos bairros – periferias, favelas etc. – e/ou a definição de nos estabelecimentos comerciais e serviços públicos, – como em escolas e hospitais. Os negros brasileiros, descendentes de africanos que foram trazidos para a América, contribuíram de forma decisiva para a formação do Brasil, porém não foram reconhecidos nesse processo. O que acarretou no desenvolvimento das relações raciais ocorrendo de modo que comunidades negras enfrentam dificuldades para ter acesso a recursos básicos, como água, terra, habitação, saúde, educação etc. Fica evidente que existem regras escritas e não escritas que determinam que pessoas indesejáveis habitem ambientes não desejáveis e carreguem no cotidiano questões que nos coloque nesse lugar de não humano.

Justamente nesse mês de maio, no marco dos 132 anos de abolição da escravidão no Brasil, evidencia-se, o quão dilacerador é o caminho tomado pelo coronavírus. A desigualdade racial marcada entre pretos e brancos coloca essa data em foco e evidência para repensarmos juntos o que significou a abolição da escravatura. Como canta o grande Lazzo Matumbi “No dia 14 de maio, eu saí por aí. Não tinha trabalho, nem casa, nem pra onde ir. Levando a senzala na alma, eu subi a favela. Pensando em um dia descer, mas eu nunca desci”. Estamos desde o dia 13 de maio de 1888 em cima das favelas que nunca descemos, vivenciando o cerceamento ampliado de direitos e sendo as principais vítimas da violência provocada por uma política de drogas falida. Sejam em enfrentamentos de crises econômicas, políticas, ambientais, pretos e pretas, quilombolas e indígenas, são colocados em risco permanente. 

Mas é nesse movimento do sentir que os povos pretos em África e diáspora nos ensina através do contato, do respeito, da música, da dança e também no entender que pertencemos de forma horizontal ao mesmo espaço. Estar de forma horizontal não é apenas ser lembrado pelas nossas resistências, mas pela nossa própria existência. A mesma que trouxe e apresentou a medicina, a filosofia, a matemática, a astronomia e tantas outras ciências ao mundo. Nesse leque de criações e possibilidades, temos como arma principal: a nossa voz e se a comunicação é fundamental para a socialização, para a negritude ela é sinônimo de PODER!

Assim, em um mundo marcado pela desigualdade social e estruturado pelo racismo, qual o contexto e cotidiano da população preta e periférica nesse cenário de pandemia? Para sabermos, vamos travar um diálogo com olhares e vozes da luta negra no Brasil, dia 21 de maio, às 18 horas (Instagram @usinadevalores) com a participação de Tainá de Paula, Arquiteta e urbanista, especialista em Patrimônio Cultural pela Fundação Oswaldo Cruz, Mestre em Urbanismo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e Coordenadora do BR Cidades Rio, também com a presença de Diego Santos Lima, Cofundador, educador e coordenador da Biblioteca Comunitária Zeferina Beiru, organização comunitária autônoma localizada no Bairro do Arenoso, periferia de Salvador e psicólogo do Programa Corra Pro Abraço – Juventude, com intervenção artística de Amanda Rosa, atriz, poeta, MC, compositora, artesã e produtora cultural em “Nsabas. A live terá como mediação, Dudu Ribeiro, articulador social do Usina de Valores. Juntos iremos ecoar a nossa voz preta!

6 comentários

  1. João Victor Neves em 19 de maio de 2020 às 20:34

    Top Top Top Top, texto bom demais.

  2. Andreia Simplicio em 19 de maio de 2020 às 20:52

    Excelente reflexão, que também é grito! Obrigada por essa contribuição, Larissa.

  3. Ramir Senna em 20 de maio de 2020 às 09:57

    Excelente texto.
    Quando será a Live?

    • Lucas Barbosa em 20 de maio de 2020 às 10:02

      Olá Ramir, bom dia! A live será quinta-feira (21 de maio) às 18h, no perfil do instagram @usinadevalores

  4. ANGELA ERNESTINA CARDOSO DE BRITO em 20 de maio de 2020 às 10:55

    Além da Modelo ser linda, o texto esta bem escrito. Parabéns!

  5. José Domingos Nunes Filho em 20 de maio de 2020 às 12:53

    Excelencia de palavras, para um mundo cheio de preconceito! Parabéns…

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