Raulo Santiago

Não existe espaço para o silêncio quando se vive na favela

Em pouco mais de três meses, 434 pessoas foram assassinadas pela Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro – PMERJ, em 2019. Esse é o maior registro de assassinatos decorrentes de intervenção policial desde 1998.
Um dado gritante por si só, denuncia a gravidade do que está acontecendo nesse estado, onde o discurso de ódio contra a juventude negra, das favelas e das periferias é constante e se amplificou na voz de um governador que faz selfie enquanto está em um helicóptero da polícia civil, durante uma operação onde esses policiais efetuaram disparos na direção de uma favela em Angra dos Reis, no início de Maio.

Talvez, para quem não viva na favela, ou no Rio de Janeiro, esse início de texto possa parecer um roteiro de de filme de ação mal escrito. Antes fosse. Para nós é a vida real e o contexto desse fato é desesperador e aterrorizante.

Afinal, quando um governador faz esse tipo de bizarrice, somada com tantas outras, como sua famosa frase “mira na cabecinha e fogo”, existe toda uma população que está na mira, no alvo, na reta de um disparo de hipocrisia e ódio, que carrega o racismo histórico direcionado contra nós e que nos assassina como política pública de genocídio.

Nesse contexto, a violência que vivemos é justificada como “construção de segurança pública”, só que isso só acontece para não moradores de favela. Afinal, sempre que a sociedade que não vive a realidade em que estamos inseridos pede segurança, a favela sangra. Ou seja, é nítido que no desenho dessa sociedade atual, fundada em racismo e desigualdade crescente, pessoas que moram em favelas não são vistas como cidadãs plenas de direitos, inclusive o de ter segurança, mas sim como uma ameaça ao privilégio garantido às custas da nossa violação diária.

Quem tem o privilégio de andar, trabalhar, estudar, entrar ou sair de casa sem o medo de levar um tiro na cabeça deve saber que isso é um privilégio. Para enfrentar essa realidade é imprescindível fazer barulho. Não existe espaço para o silêncio quando as injustiças sociais estão presentes de forma tão brutal. O silêncio reforça um lado que não é nosso, mas sim o da violência.

É revoltante saber que o significado do nosso assassinato é diminuído, ainda hoje, através de justificativas vagas, porém, aceitas pela maioria: foi “bala perdida” o tiro que acertou tantas pessoas somente este mês, como o professor Jean Rodrigo no Complexo do Alemão, ou o menino Kauã Rozário na Vila Aliança? Ambos foram assassinados durante o início de operações policiais nas respectivas favelas.

Tudo isso é empacotado no discurso de “guerra às drogas”, onde a guerra fica para as favelas e periferias, enquanto as drogas estão por todos os lugares. Como pode ser “bala perdida” se existe um lugar específico onde os disparos serão feitos? Se existe os lares, as vidas e os corpos específicos que terão sua rotina atravessada pelo disparo?

O cenário é catastrófico. Mas é importante destacar o X da questão é: é catastrófico? Como garantir a dignidade humana, quando a realidade ainda é construída a partir da manutenção da desigualdade e do racismo, direcionado para uma população específica, onde a violência entra como principal política pública?

No Papo Reto, coletivo que faço parte aqui no Complexo do Alemão, temos tentado desenvolver ações, reflexões e mobilização da população através de eixos como fortalecimento da cultura local, discussões e ações diretas com foco em redução de danos. Investimos em uma comunicação ativa e constante de monitoramento da violência em tempo real com moradores e moradoras, além de construção de dados para denunciar a violência de estado e a ausência de políticas públicas que garantam direitos e vida.

Com isso, tentamos garantir justiça, memória, participação cívica e organização popular na construção direta de direitos para a favela e as pessoas daqui.

Porém, startar a participação com Engajamento Político da população tem sido difícil, ainda mais quando a criminalização de tudo que vem da favela se intensifica a cada dia. Um fato que marca muito isso é a prisão do DJ Rennan da Penha, artista conhecido no Brasil inteiro através do Funk e que está dentre aqueles que ajudaram a alavancar, novamente, o nome de bailes de favela, como o famoso BAILE DA GAIOLA.

O Dj Rennan e o Baile da Gaiola são alvos da perseguição histórica ao FUNK e também de toda a cultura das favelas e periferias. Hoje, com uma acusação fajuta de ser “informante do tráfico”, o DJ Rennan, jovem, negro, da favela e do funk, empresário no ramo de eventos e empregador de mais de 30 pessoas, está preso.

Famoso, o Baile da Gaiola já não acontece mais. Entretanto, seu nome e suas músicas seguem sacudindo as casas de show pelo país afora, inclusive as mais chiques, mostrando mais uma vez a face estrutural do racismo, que mantém desigualdades e violações em curso o tempo todo neste país, onde na favela é proibido, preso ou morto, enquanto, fora de lá, tudo é liberado.

Para discutir e disputar a narrativa sobre a criminalização das favelas e periferias, das pessoas e culturas daqui, onde a ideia de “guerra às drogas” é a ferramenta massiva da manutenção violenta e racista que vivemos, nasceu o MOVIMENTOS, coletivo que também faço parte. O grupo é formado por jovens de favelas e periferias que acreditam que uma nova política sobre drogas é possível e que tem buscado debater essa temática e construir reflexões a partir da nossa realidade.

Então, através da comunicação, da educação e da cultura, temos enfrentado o racismo e a violência, discutindo de forma mais aprofundada o significado de tudo isso, tentando construir uma visão ampla sobre a realidade das políticas sobre drogas atuais, buscando frear a lógica da “guerra” que só irá assassinar e prender corpos específicos, em endereços específicos.

Esse tratamento histórico de violência como principal contato de governantes com as favelas e periferias, somado a desigualdade crescente que o racismo constrói para manter o privilégio, tem como objetivo ignorar e travar a potência da favela. Então precisamos garantir e manter a possibilidade de Coexistir na Diferença, construindo e disputando conhecimento sobre a nossa realidade e mostrando que nossas vidas e o nosso lugar importam.

Não podemos aceitar que essa seja a sociedade onde o carro de uma família negra, inclusive com criança dentro, é atingido por mais de 80 tiros de fuzil, de uma sequência de mais de 200 disparos feitos por militares do exército nos acessos de uma favela do Rio de Janeiro. Disparos que  assassinaram o músico Evaldo Rosa e o reciclador Luciano Macedo.

Este é um fato que deveria parar o estado e o país, mas que segue sendo abafado pelos próprios militares. Uma realidade onde policiais são vistos forjando, alterando a cena de um crime na favela da Providência em 2015 e, recentemente, estes foram absolvidos.

Ou seja, todos e todas aproveitando um governo ignorante, marionete do privilégio, para ‘passar pano’ para o inaceitável, trazendo de volta a realidade do atira primeiro e depois pergunta, incentivada em nível estadual e federal por estes governos sem compromisso nenhum com direitos e vida de juventudes negras, periféricas e da favela.

Por isso, precisamos buscar formas de reconstruir o Bem Viver, que garanta a Dignidade Humana das pessoas nas favelas e periferias do país, trazendo o racismo como discussão central sobre tudo o que está acontecendo e como essa estrutura discriminatória é o que faz continuar crescente o constante abismo da desigualdade social.

O engajamento político só virá com a construção de perspectivas e ações que considerem a participação das pessoas, onde a Escuta real será a super ferramenta para o envolvimento, é fundamental ouvir as vozes de quem re-existe no cenário do caos.

É importante coexistir na diferença, mas, para isso, precisaremos enfrentar o racismo que gera as desigualdades. Sem isso, é impossível garantir os direitos e a vida de pessoas que são excluídas dos espaços de decisão sobre o amanhã e sobre o futuro.

Não existe tempo perdido. O que existe são tempos de luta.

Luta por direitos humanos, dignidade humana, perspectiva e enfrentamento direto ao racismo, que constrói o privilégio de quem vive e quem sobrevive neste país.

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