FÉ NA VIDA

Por Clemir Fernandes*

Compreender religião como meio de religar seres humanos ao Sagrado equivaleria a dizer que todos quantos viveram ou vivem essa experiência pautariam suas existências pelo princípio essencial de defesa radical da vida, em plenitude, para todas as pessoas. E, por extensão, para toda a natureza. Porque o Sagrado está inerentemente identificado com a vida e, mesmo, com a gênese de toda a vida. Assim sendo, promover, preservar e defender a vida, com dignidade, são ações decorrentes da própria natureza e identidade das religiões. 

No grande tronco abraâmico, por exemplo, judeus, cristãos e muçulmanos acreditam em Deus como ser persistente na tarefa continuada de desenvolver vida saudável, apesar de muitas vezes ser instrumentalizado para a morte. Ou seja, em contexto de degradação humana, quando maldade e violência se tornam frequentes, principalmente provocadas por agentes mais poderosos que discriminam e desumanizam grupos e povos minoritários, Deus se manifesta em favor destes, como ser ativo nas lutas por vida, justiça e liberdade. Para tanto, mobiliza e empodera estes grupos e povos para enfrentar e superar todas as formas de atentado contra sua dignidade. Assim, Deus, que é vida, tudo faz para comprometer a humanidade numa pedagogia continuada, geração após geração, de promoção da vida e da dignidade humana das pessoas mais vulnerabilizadas. 

Com base nessa compreensão, violência e morte são antíteses da identidade do Sagrado e, consequentemente, de todas as pessoas que se identificam com ele. Portanto, é muito estranho e chocante perceber manifestações e ações, como em nosso país, por parte de muitos e diferentes pessoas religiosas, que afirmam crer no Deus da vida, atuarem contra Deus, em especial, naquilo que é central nele: a promoção plena e exuberante da vida. Pior ainda, agem contra a vida e pela violência usando e abusando do nome do próprio Deus. Para ilustrar de uma maneira contextual e tristemente verdadeira: cada vez que uma pessoa negra é agredida ou uma pessoa LGBTI+ é violentada ocorre a profanação do Sagrado. O divino não é necessariamente blasfemado por discursos desconexos com sua identidade, por mais desagradável que isso possa ser. O que violenta, agride ou é pecado contra Deus, como se diz no léxico das religiões abraâmicas, é desumanizar e agredir a vida das pessoas. Isso é profanar o Sagrado. 

Portanto, estar religado com o Sagrado, seja o nome que possa ter em diferentes expressões religiosas, equivale a ser defensor de direitos e dignidade da vida para todos os seres humanos, independente de qualquer condição, situação ou identidade. Pois todas as vidas humanas resultam da multiforme graça divina, como afirma um versículo bíblico. Portanto, toda espiritualidade religada a esse divino se expressa, inequivocamente, como afirmação eloquente da vida e contra toda violência, discriminação, desumanização.

Fé na vida – para religiosos e também não religiosos – torna-se, assim, um fundamento ou imperativo ético a pautar a existência em todas as suas relações, tanto privadas quanto públicas, sejam em qual âmbito for. Porque agir fora deste escopo é a negação da fé na vida e aniquilamento da própria vida. 

Que tenhamos fé na vida, e rejeitemos o pecado da violação do direito e da dignidade do outro!

*Clemir Fernandes é pesquisador do Instituto de Estudos da Religião (ISER).

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