Feminismos e diversidade
Com Tatiane dos Santos Duarte
“Seriam feminismos mais comunitários e pluralizados que emergiriam dos/nos territórios, em diálogo com as urgências da vida das mulheres ali territorializadas”
Um feminismo que fala sobre uma identidade atômica de mulher sempre foi insuficiente para entender a vida e a luta das que fazem a sociedade brasileira e “criam os filhos dessa nação indígena, negra, latino-americana, popular, caiçara, quilombola, urbana e rural, favelada, ribeirinha, comunitária e fissurada”. A partir dessa constatação sobre o movimento feminista ocidental e a realidade nacional, a historiadora e doutora em Antropologia Social Tatiane dos Santos Duarte propõe, a convite do Usina de Valores, formas de fazer política feminista relacionadas a diferentes vivências, contextos geográficos e culturais.
Seriam, segundo ela, feminismos mais comunitários e pluralizados, envolvendo metodologias coletivas capazes de abarcar a expressão das diversidades e particularidades de mulheres brasileiras.
“Seriam feminismos mais comunitários e pluralizados que emergiriam dos/nos territórios, em diálogo com as urgências da vida das mulheres ali territorializadas, segundo os corres das mães, os deslocamentos na imobilidade urbana, as dores de relações afetivas violentas, as exclusões sociais e as vulnerabilidades das geografias habitadas, os esforços e desalentos, os cansaços decorrentes do trabalho do cuidado sem remuneração, a fadiga da sobrecarga mental, as insatisfações engolidas e não expressadas, a insegurança e medo policial, a precarização laboral, a obrigação “natural” de servir a outrem”
Tatiane dos Santos Duarte é licenciada em História pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), mestre e doutora em Antropologia Social pela Universidade de Brasília (UnB), onde compõe, como pesquisadora e docente colaboradora plena, o Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre a Mulher (Nepem) do Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares (Ceam). Tem se dedicado a analisar as relações entre grupos cristãos, política, espaço público, laicidade, liberdade religiosa e democracia. Ao Usina de Valores, ela reflete sobre o valor Coexistir na Diferença.
Afirmar diversidades
Para Duarte, o movimento feminista ocidental, de mulheres brancas contra a ordem patriarcal*, esse sistema de dominação masculina, avançou em muitas conquistas no século XX, como o direito ao voto, de estudar, trabalhar, se divorciar, a liberdade de ir e vir, a titularidade cidadã, entre outras. Mas, por outro lado, desconsiderou muitas urgências. Sobretudo, essas lutas foram feitas por meio de uma identidade ilusória “criada pela marcação universal da opressão às mulheres e que desconsiderava os aspectos étnicos, regionais e raciais, as diversidades e especificidades entre as mulheres”. Ela questiona: “Indígenas, pretas, quilombolas, ribeirinhas, faveladas, acessaram tais direitos?”
“Apesar da contribuição inconteste dos feminismos ocidentais para a garantia de direitos humanos das mulheres e para a oposição a uma divisão sexual que beneficiou apenas aos homens, sua marca eurocentrada aprofunda o fosso entre nós, pois, estabelece dicotomias, logo atomiza, não prolifera, não se comunica e nem dialoga com as muitas precisões de nós, habitantes das margens do mundo – para usar perspectiva da educadora, intelectual e ativista negra Rosane Borges – cujos corpos são ainda neutralizados pelas prerrogativas universais de direitos humanos.”
Não há coexistência quando há a mulher segundo um paradigma universal, afirma Duarte. Portanto, não pode haver uma proposta hegemônica feminista. É por isso que ela chama atenção para as contribuições das teorias decoloniais latino-americanas e dos feminismos negros e indígenas. A brasileira Lélia Gonzales, por exemplo, aponta a omissão da questão racial nos debates do feminismo; a boliviana Julieta Paredes traça perspectivas contra-hegemônicas comprometidas com o viver bem. São olhares críticos fundamentais para a construção de uma ética-política feminista para novas relações de gênero, culturais, sociais, econômicas, ambientais, raciais, segundo seus lugares nas bordas do mundo.
“Potencializadas nos encontros e nas lutas políticas territoriais que nos conectam local e globalmente, afirmamos encruzilhadas, cicatrizes e dores, para afirmar nossas diversidades e os direitos e a cidadania que ainda ousam nos usurpar.”
Assim, Duarte aponta para a urgência de um engajamento em prol da “garantia de direitos e do reconhecimento cultural, social e político de nossa diversidade”. Para isso é fundamental perceber como o processo histórico brasileiro se deu a partir da experiência colonial escravocrata, de narrativas hegemônicas e de uma ética nacional de violência. Ela lembra, porém, que identidades consideradas passivas ou a quem não se designa humanidade sempre reivindicaram, sim, pelas beiradas e nos centros possíveis, “suas (re) existências plurais como coletivos historicamente políticos e organizados contra sistemas de poderes vigentes, antes mesmo dos estatutos modernos e republicanos.”
As lutas de hoje seriam, portanto, um processo tanto de reconhecimento quanto de continuidade. Ela termina:
“Há a urgência de engajamentos políticos de mulheres de forma comunitária, pautada pela ética da autonomia e pela primazia da coexistência de nossas diversidades divergentes feitas nas muitas lutas de outrora e que devem ser continuadas hoje de forma radicalmente interseccional, feminista e antirracista e, sobretudo, aprendendo com aquelas que estão ainda habitando as bordas do mundo, mas produzindo feitos locais igualmente revolucionários”.
*Sistema patriarcal: O patriarcado é um sistema social baseado em uma cultura, estruturas e relações que favorecem os homens, em especial o homem branco, cisgênero e heterossexual.
Para ler mais:
Artigo: Coexistir na Diferença e feminismos, por Tatiane Duarte
Dicionário Feminino da Infâmia: Acolhimento e diagnóstico de mulheres em situação de violência, organizado por Elizabeth Maria Fleury-Teixeira e Stela Nazareth Meneghel (Editora Fiocruz, 2015)
Pactos narcísicos no racismo: Branquitude e poder nas organizações empresariais e no poder público, de Cida Bento (Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, Departamento de Psicologia da Aprendizagem, do Desenvolvimento e da Personalidade, 2002)
Pensamento feminista hoje: Perspectivas decoloniais, organizado por Heloisa Buarque de Hollanda (Bazar do Tempo, 2020)