Histórias e valores: humanize seu olhar através das narrativas

Por Vinícius Lima

Eu conto histórias, esse é o meu trabalho. Tenho um projeto chamado SP Invisível em que eu ouço e conto histórias da população em situação de rua da cidade de São Paulo, para mostrar que todos e todas que estão ali naquelas calçadas frias tem um motivo para estarem ali, ninguém nasceu naquela situação ou brotou, como uma árvore. É, para isso, que contamos histórias há mais de 5 anos diariamente, para humanizar o olhar da sociedade e mostrar que todos têm um porquê estarem onde estão, ser como são e fazer o que fazem.

Porém, uma história, nunca é só uma história. Uma história sempre sinaliza algo, para além dela. Uma história pode mostrar uma ideia, um conceito, um interesse, também através de histórias podemos sinalizar valores. Cabe a nós nos perguntarmos, “quais valores queremos passar com as histórias que vamos contar” e “como vamos contar as nossas histórias”? Uma história pode tanto construir, quanto destruir. Uma história pode curar ou ferir. Tudo depende dos valores que levamos conosco e queremos passar para os outros.

Como evangélico, sigo uma pessoa que sempre transmitiu seus valores através de histórias. Todas as histórias que Jesus contava direcionaram para apenas um caminho, o amor. Numa época extremamente machista, fariseus levaram a Jesus uma mulher que “foi pega em adultério”. Segundo a lei, ela mereceria ser apedrejada. Porém, apenas com um questionamento, a história foi alternada e Jesus demonstrou seu amor por aquela mulher que era vítima do sistema machista de sua época. Amor, era isso que Cristo transmitiu através de suas histórias, enquanto os fariseus queriam passar a dura mensagem da lei e da morte.

Quem pode contar a história tem poder. Porém, o que faço com esse poder que tenho em mãos? Essa é uma outra pergunta que nós, contadores e contadoras de histórias, temos que fazer. Quando lido com a população em situação de rua, posso retratá-los, assim como fazem os jornais sensacionalistas, criminalizando, com helicópteros por cima da Cracolândia, generalizando e sem ouvir suas vozes e suas particularidades ou ironizando como fazem os programas de humor. Porém, como alguém que possui os meios para contar essas histórias, optamos por contar histórias, humanizando as pessoas, escolhemos mostrar rostos e ampliar vozes, uma a uma, valorizando cada individualidade.

Durante esses cinco anos, ouvimos mais de 1000 histórias dos nossos irmãos e das nossas irmãs em situação de rua. Essas histórias, como bem disse aqui acima, sempre nos transmitiram valores e sempre os passaram para as pessoas que seguem a página, também. Por isso que, mesmo durante a polarização dos últimos anos, a página cultivou tantos seguidores com perfis tão diversos, pois o SP Invisível, nada mais é, do que uma construção coletiva de valores através de histórias. Cada história nos ensina um valor, como o Bem Viver, a Escuta, o Coexistir, o Engajamento e a Dignidade. Encontramos todos esses valores nas ruas, basta abrirmos nossos olhos.

VALORES E HISTÓRIAS

Amaral – Bem Viver
“O problema é que tem escola de rico e escola de pobre, e as crianças de uma escola de rico acham que podem comprar tudo, mas não podem. Não da para comprar amor. A gente tá falando de educação e de morador de rua, duas coisas que ninguém liga. Todo mundo só liga pro ‘eu’ e pro dinheiro. É difícil desse jeito. Meu sonho pra educação? É que não tenha essa história de escola de rico e de pobre, que as crianças possam estar na escola desde cedo e sem diferença, com respeito.

Eu parei de estudar cedo, mas se eu pudesse fazer uma faculdade, faria uma faculdade pra ser técnico do Corinthians.”

O Amaral é um amigo nosso que já apareceu diversas vezes na página do SP Invisível. O que mais me admira nele é que ele é uma pessoa que está nessa situação de rua, porém ele participa, como voluntário, de quase todos os outros projetos que ajudam as pessoas em situação de rua. Ele não apenas busca o bem individual e suprir as necessidades individuais, mas reparte tudo o que ganha e, inclusive, tenta ampliar a distribuição para outros invisíveis da cidade. 

Além de participar dos projetos que estão na rua, como o Bem da Madrugada, o GAS e o SP Invisível, o Amaral também vai ao CAPS – Centro de Atenção Psicossocial, para buscar atendimento com psicólogos e cuidar de sua saúde mental. Amaral não apenas se cuida e busca o bem para si mesmo, mas cuida dos outros irmãos e irmãs de rua e tenta garantir os direitos básicos a todos e todas que estão nas calçadas. Amaral me ensina sobre o bem viver.

Aparecido – Escuta Ativa
“Eu não quero presente, meu maior presente é vocês aqui, me ouvindo. Independentemente do corpo, nós somos todos iguais. Todo mundo quer ir para o céu. Não vou falar que sou velho, estou a bastante tempo na rua, mas eu tenho 60 anos. Meu nome é Aparecido. Não sei se o tempo passa por mim ou se eu passo por ele. Eu era casado, trabalhava como caminhoneiro, mas a minha esposa vivia ligando na empresa para saber se eu realmente estava trabalhando ou aprontando. Eu poderia estar com minhas filhas e meu netos agora, mas a nossa situação era difícil, por isso preferi a rua. Sou um cara alegre apesar de tudo, pois não vou levar nada daqui. Olha, o que estiver dentro desse kit já é bom, pois eu não me importo muito com coisas materiais. A única coisa que quero é que vocês tenham a paz de Deus no coração. Tem água aqui, eu estou com sede mesmo. Só de sentir esse moletom dá pra perceber que é bom, tem até capuz… Para mim, a maior felicidade é todos vocês aqui me dando atenção e também a todos os irmãos de rua.” #SPInvisivel #SP

Nos dias de hoje, a escuta está cada vez mais rara, são poucas as vezes que ouvimos outras pessoas para, simplesmente, ouvir. Sempre ouvimos para rebater ou para afirmar algo acima daquilo que irá nos engrandecer e diminuir quem está falando. A escuta está tão escassa que o Aparecido nos recebeu dizendo – “eu não quero presente, meu maior presente é vocês aqui, me ouvindo”. 

Acima de tudo, o SP Invisível é um trabalho de escuta. Escutamos histórias, antes de contá-las. Sempre ouvimos coisas das quais discordamos ou que não faríamos igual, mas não nos cabe julgar ou condenar, pois não vivemos no mesmo contexto que as pessoas que nos contam suas histórias, somos muito mais privilegiados, tivemos outras oportunidades e outros recursos. Muito do ódio que existe contra a população em situação de rua é decorrente da falta de diálogo e da falta de de escuta.

Adriano – Coexistir na Diferença
“Eu to gostando muito disso aqui. Minha vida é muito triste quando não tem essas festas, como essa parada e o carnaval. Meu nome é Adriano, eu sou heterossexual, mas aqui tá legal demais, tá tudo em paz, tem muita gente boa. É muita felicidade.

A minha felicidade é ver o povo ser feliz e poder participar da felicidade deles. Normalmente sou excluído da felicidade dos outros.Lógico que hoje eu sei quem é gay e quem não é, mas no dia a dia nem percebo, sabe porque? Porque é todo mundo igual, todo mundo ser humano. Assim que devia ser, não é?”

Na último parada do orgulho LGBTTQ deste ano, fomos para a Avenida Paulista ouvir as histórias dos invisíveis daquele dia: catadores, pessoas em situação de rua, ambulantes. Lá, encontramos o Adriano, um catador, negro e que disse que era heterossexual, mas que a felicidade dele era “ver o povo ser feliz e poder participar da felicidade deles”. Coexistir na diferença é mais que tolerar ou simplesmente respeitar, é “compartilhar as felicidades”, como diz o Adriano e, também, compartilhar as feridas.

Segundo dados do Ministério dos Direitos Humanos de 2018, entre 2011 e 2018, 4.422 pessoas foram assassinadas por crimes motivados por LGBTfobia, isso equivale a 552 mortes por ano ou uma vítima a cada 16 horas no país. Dados como esse não podem ser tolerados. Se queremos coexistir com o diferente, não podemos não sentir nada, essa dor tem que doer em todos nós. Assim como Adriano partilha alegrias com os diferentes, deve haver a partilha das feridas. Isso é coexistir.

Engajamento Político – Professor
“Se tem uma coisa que eu me arrependo é de não ter tirado um diploma. Eu era muito briguento na escola, então só fiz até a quarta série. Hoje, eu faria alguma faculdade de humanas, acho que Filosofia. O importante é estar sempre estudando, sempre lendo.

Tem gente que gosta de ler revista, jornal, gibi, livros. Não importa o que for, leia. Aqui em São Paulo, o pessoal liga mais pro dinheiro. Lá no Rio, as pessoas se preocupam mais com a cultura. Eu vendo livros: num fim de semana, vendia 500 livros no Rio de Janeiro, aqui não faço isso nem em um mês. Não é a toa que o maior escritor brasileiro é carioca, o Machado de Assis. Gosto também do Nietzsche e do Schopenhauer.

Hoje, quem detém a educação? O rico, né. As melhores escolas e faculdades são privadas, e não tem interesse do rico em ensinar o pobre. Por exemplo, a Laurinha, uma menininha de 4 anos que mora aqui no Glicério, eu não consigo colocar ela numa escola boa, então eu dou dois reais pra ela ir na escolinha aqui perto e dou umas aulas de reforço aqui na rua mesmo. Quero que ela tenha um futuro diferente do meu.” 

Embaixo do viaduto do Glicério, há um grupo de pessoas em situação de rua por lá. Se você for lá e perguntar pelo “Professor”, pode ter certeza que todos e todas por ali vão conhecer. Ele é chamado assim, pois embora não tenha tido acesso a educação, entende a importância disso e estuda diariamente Machado de Assis, Nietzsche e Shopenhauer e conscientiza toda comunidade sobre a importância de estudar e de se informar.

Porém, o que é mais surpreendente e admirável é a relação que o Professor tem com a Laurinha, uma menininha que, na época, tinha 4 anos e era sua filha adotiva. Segundo o artigo 53 do ECA, “a criança e o adolescente têm direito à educação”, por isso o Professor faz questão de dar a Laurinha o que ele não teve, a oportunidade de estudar. Se, muitas vezes, as pessoas em situação de rua não votam ou não se organizam em partidos, histórias e atitudes como a do Professor nos mostram que o Engajamento Político pode ir além do que esses meios tradicionais, quando feito com afeto.

Dignidade Humana – José
“Me deram um tiro de borracha sem eu ter nada a ver com isso aqui. Só que é assim que funciona, eles vem e tratam todo mundo como bandido. Não querem nem saber quem é inocente, quem é trabalhador. Se tá aqui, é bandido, na cabeça dos policiais.

Não é assim que tem que ser. Eu mesmo, sou trabalhador e uso minha droga, assim como pago minhas contas. Meu nome é José. Pode puxar minha capivara, você não vai achar nada. Não é todo mundo que usa que é ladrão. Eu trabalho pra usar, não roubo ninguém.

Se quisessem mesmo que a Cracolândia nunca existisse, acabariam quando começou. O Estado e a polícia lucram mais com isso do que os próprios traficantes. Querem acabar com nada, não. Pode divulgar isso aí porque todo mundo precisa ver”

A visibilidade é o primeiro passo para a garantia dos direitos humanos. Não podemos garantir direitos àqueles que nem vimos como seres humanos, por isso, precisamos contar histórias e humanizar. Se não fizermos isso, legitimamos a forma que o Estado enxerga os invisíveis e a violência causada sobre eles, como percebemos no relato do José, durante a invasão da Polícia Militar na Cracolândia.

Hoje, a população de rua é visto como lixo, como bicho, como um alvo, como sujeira, como tudo, menos como ser humano. A forma que vimos essas pessoas não permitem seus direitos ou sua dignidade sejam garantidas, pois antes de lutar por isso, precisamos reconhecê-las como humanos, não como “noia”, “cracudo” ou qualquer rótulo preconceituoso que utilizamos. 

Vivemos tempos em que histórias são modificadas, reinventadas ou até mesmo criadas. Tudo isso tem sido feito para transmitir valores negativos, que ferem o ser humano e apenas mantém o autoritarismo.

Quais histórias vamos contar e quais valores queremos comunicar com as nossas histórias? Vamos contar histórias que transformem a realidade que vivemos ou vamos conviver com uma falsa verdade? Vamos contar histórias que edificam ou que destroem? Vamos promover a vida dos invisíveis ou simplesmente fortalecer os poderosos com essas histórias? 

É preciso se fazer essas perguntas para promover valores positivos, como a Escuta, o Bem Viver, a Dignidade, o Engajamento Político e a Coexistência nas diferenças, em meio a uma sociedade que quer promover o ódio, a violência e intolerância.

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