Juventudes, pluralidades e valores dentro da atual conjuntura

Por Jarda de Araújo.

O que eu tenho pra falar agrega valor? Esse foi o primeiro questionamento que me fiz ao receber um convite do Usina de Valores para ministrar uma oficina, em maio de 2019, com o tema: a diversidade nas diferenças e as violações das desigualdades sociais (Coexistir na Diferença). Peguei-me fazendo esse questionamento, pois diante do que está socialmente posto, travestis são impossibilitadas de construir politicamente, ainda que no Brasil carreguemos um histórico de subversão e articulação com as bases.

Percebo-me inserida em vários recortes: o do gênero, raça, classe e, por fim, o de juventude. Sabendo disso, eu não poderia questionar sobre a possibilidade da minha fala não ser potente. Eu sou uma potência!

Quando pensamos em direitos humanos e valores, atentas aos recortes trazidos anteriormente, devemos fazer uma análise do contexto social, principalmente para a juventude. Contexto esse que permanece engessado no que diz respeito aos costumes e aos valores pré-moldados a partir de uma hegemonia cisgênera, heterossexual, fundamentalista e branca, que empurra a juventude para processos de violência, criminalização e exclusão. 

Mas gata, o que são valores?

De acordo com as populares buscas na ‘Mãe Google’, podemos entender “Valores” como ética, que se resume no grau de importância de coisas ou de ações, tendo como objetivo determinar quais as melhores ações a serem tomadas ou qual a melhor maneira de viver.

Dentro de um país `laico’, porém, hegemonicamente moralizador e carregado de valores, é possível pensarmos em direitos humanos e pluralidade das juventudes? Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos? E sobre as violações dos direitos da população negra? Os altos índices de violências baseados no gênero? 

Os direitos humanos são destinados a todo o ser `feito humano’, independente de nacionalidade e/ou etnia, cor, raça, religião, idioma e qualquer outra questão, como característica física, condição social, identidade de gênero, sexualidade, deficiência. São indivisíveis, universais, independentes e interligados. Estipulados por meio da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) na tentativa de responder catástrofes geradas pela II Guerra Mundial.

No Brasil, resquícios do processo de colonização, como estruturas racistas e supremacias de gênero predominantes, até os dias atuais, potencializam violências, tirando a humanidade de todo aquele/aquela que ouse romper os limites colocados como únicos e possíveis.

Para se pensar em quais contextos tem se dado a efetivação dos direitos humanos no Brasil, faz-se necessário também entendermos em que condições eles estão se mantendo dentro da atual conjuntura. Para isso torna-se interessante pensarmos nas suas violações e em como a sociedade civil tem reagido. 

Com a chegada de 2019, o atual governo trouxe consequências que negligenciam questões políticas, leis e projetos societários, intensificando a dificuldade de viabilizar a criação de novas possibilidades de mundo para alguns segmentos da juventude. Coexistir lidando com o aumento do conservadorismo tornou-se difícil e perigoso.

Essas questões são direcionadas para populações que já lidam com pontos subsidiados por valores estruturais que impossibilitam um desprendimento das normas.

No que tange o movimento LGBTQI+, logo na primeira semana de 2019 foi assinada uma MP (Medida Provisória) que retira a comunidade LGBTQI+ das diretrizes dos Direitos Humanos. Um pouco após, a mesma onda conservadora teve seus rebatimentos nas propagandas estatais. Após orientações do Planalto, campanhas que possuíssem termos e/ou palavras que fizessem alusão ao universo LGBTQI+ foram proibidas em qualquer tipo de peça publicitária e de divulgação. 

Para a população negra no Brasil, a negligência das pautas trazidas pelo movimento é histórica. No governo Temer (2016), uma das primeiras medidas deu fim a Secretaria Nacional de Promoção da Igualdade Racial, criado no governo Lula em março de 2003. Já no governo de Jair Bolsonaro, o Brasil tem enfrentado dificuldades intensas que não dialogam com os ganhos galgados em cima de muitas lutas e movimentações políticas.

O atual presidente da república, em seu histórico midiático, é responsável por diversas condutas racistas, LGBTQIfóbicas e machistas. E, por falarmos em machismo, essa outra opressão também não passa despercebida dentro dos atuais desdobramentos do mesmo governo. Governo esse que, mais uma vez baseado em valores e ideais arcaicos, criou uma comissão responsável por analisar e impedir questões que pautem o tema de “gênero” no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM).

O que se torna interessante quando esses pontos são trazidos? É impossível pautar juventude sem falar sobre pluralidade. Acredito, principalmente, que a atual conjuntura tem propiciado à violação dos direitos humanos, sendo movimentada por uma massa conservadora e hegemonicamente branca que, historicamente, tem violado, com base em valores cristalizados, os direitos das minorias sociais.

Reconhecendo também que a onda conservadora atinge de forma diferenciada os vários segmentos presentes nas juventudes e minorias, incluindo o seguimento Trans, na qual estou inserida. Minhas iguais não vivenciam plenamente a juventude por lidar diretamente com as tecnologias de opressão no Brasil, o país com o maior índice de morte de Travestis e Transexuais no mundo, impedindo que as mesmas consigam viver sua adolescência e juventude, tendo 35 anos de idade como média de vida (ANTRA).

A negação do uso do nosso nome, a negação do acesso aos direitos civis, a negação do acesso aos espaços e a negligência da nossa inserção na saúde, espaço importantíssimo para nos mantermos vivas, são alguns exemplos das violações a quais estamos submetidas. 

E a gente deita? De jeito nenhum! No Brasil, constantes lutas e enfrentamentos sempre permaneceram atravessados em nosso caminho enquanto juventude diversa. O reconhecimento desse combate pela garantia de nossos direitos oferece subsídios para que, atualmente, o movimento intensifique suas formas de enfrentamento e desenvolva mecanismos para a permanência do que foi anteriormente construído e estabelecido através do Estatuto da Criança e do Adolescente. Reconhecendo, principalmente, que a luta é coletiva e precisa ser feita de forma estratégica e plural, tornando-se possível, assim, dar continuidade ao nosso aquilombamento e aos espaços de sobrevivência. 

Aqui mesmo, do lugar de onde falo, no bairro do Ibura localizado numa área periférica da zona sul recifense, ‘’coletivas’’ como a Favela LGBTQ+ traz pra dentro da dinâmica do bairro questões ferventes que se fazem presentes nas atuais discussões do movimento, criando dentro da comunidade possibilidades pedagógicas que descaracterizam ideais negativos construídos em cima de valores.

O Espaço Cultural das Marias, que também funciona como bar, é como um quilombo no bairro. Funciona como um espaço multicultural, onde podemos desfrutar de arte, música e diversão, tendo nele um lugar de acolhimento onde nossas questões se fazem presentes, possibilitando a criação de discussões político-sociais e festividades, rompendo mais uma vez com os valores.

O Coletivo de Juventude Negra Cara Preta, do qual faço parte, através da inserção em espaços educacionais, tem o diálogo com a juventude como norte, pontuando as questões de raça, classe, direito à cidade e potencialidades da juventude negra. Na tentativa de apresentar outras possibilidades, novas formas de articulação, construção, enfrentamento, e muita resistência! Também, subvertendo valores.

Esses antros de resistência permanecem ativos, ainda que esteja em um contexto de retirada de direitos, construção de novas tecnologias de opressão e conservadorismo exacerbado. Tornando-se, assim, importantes para que, de forma estratégica, possamos ecoar nossas lutas e os direitos construídos e garantidos por leis, ainda que estejamos dentro de uma estrutura em que, cotidianamente, tenta-se negá-los. 

Quais respostas trago com todos os pontos abordados no decorrer dessa leitura? Não as tenho. Porém, o que foi trazido funciona como elemento para pensarmos em possíveis direcionamentos que possam viabilizar a construção de novas possibilidades. O contexto de retirada do que foi socialmente construído, em cima de intensas batalhas, também tem potencializado a criação de novas resistências.

A construção do sentido de coletividade, muito mais aguçado; a atenção a pontos até então despercebidos, inclusive em nossos direitos; os valores que cotidianamente interferem no fazer social e político das juventudes, funcionando como um “start” para o surgimento de novos coletivos e grupos sociais que se propõem a participar dos espaços e processos de construção política, na luta para a garantia (ainda que mínima) do direito a existência e a permanência de forma segura, saudável e plena das juventudes em todos os espaços onde se façam presentes.

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