MULHER NEGRA E A SORORIDADE UNILATERAL

Por Sueide Kintê

A tendência feminista tradicional é dizer que sororidade é uma prática comum a todas as mulheres. Para as mulheres negras com que eu tenho contato, nos foi imposto um modelo de sororidade universal, porque este era um imperativo das estratégias de subsistência e não por não ter havido mulheres que, historicamente, nos vilipendiaram, como por exemplo, as Sinhazinhas.

Vivemos uma triste realidade no país, na qual não podemos falar de nossas heranças históricas e seus resultados sem sermos chamadas de “mimizentas”. Mais uma vez, as sinhazinhas defendendo o direito de ter ferido a dignidade humana sem reparar.

Embora a máxima de algumas feministas ortodoxas seja “Supera! Somos todas mulheres e estamos do mesmo lado!”, a história mostra que a mulher negra pôde ser indulgente, inclusive com estas mulheres herdeiras do colonialismo, visto que foram suas ancestrais que colocaram nossas tataravós no tronco, trataram nossas bisavós como burras de carga e roubaram o leite da nossa linhagem para alimentar futuros senhores de engenho. Os tais “cidadãos de bem”, que se indignam com a cobrança das atrocidades de seus ancestrais, não devolvem fazendas nem empreendimentos construídos com sangue escravo. Por que nós temos que esconder nossas cicatrizes?

O que seria isso? Loucura? Autoflagelo? Síndrome de Estocolmo? Não, senso de sobrevivência. A população negra teria sido realmente extinta do país se a mulher negra não fosse movida pela sororidade. Seríamos dizimados.  

No período da escravidão, mulheres negras, frente aos seus algozes, eram capazes de garantir nutrição para as sinhás e seus filhos sem envenená-los – daí o surgimento da figura das Bás e amas de leite, que se transformam em babás. 

Não se tratava de cristianismo, “Oferece a outra face!”. Era isso ou a morte. Esse legado nos coloca diante de uma realidade em que, mesmo num contexto nefasto como a escravidão, a empatia diante da vulnerabilidade de outra mulher estava presente, porque esta mesma Bá cuidava do parto, da saúde e, inclusive, das outras gestações de sua sinhá. E, ali se desenhava, também, mesmo que de forma desequilibrada, uma relação de afetividade entre duas mulheres, o que eu de alguma maneira posso chamar de sororidade unilateral.

Este contexto, que produziu tanto aviltamento formal, sediou minhas crenças sobre esta potente maneira de sobreviver no decorrer dos séculos – um modelo de sororidade unilateral? Sim. Por isso, é necessário atualizá-lo – mais e sempre. Podemos romper com essa lógica em que mulheres negras são apenas fornecedoras. Ainda hoje podemos constatar que o poder da mulher branca “bem sucedida” está condicionado à exclusão de uma outra mulher: a negra. Ou não é assim que hegemonicamente as brancas têm tratado as empregadas domésticas? Não me diga que ajudou sua empregada a voltar para escola ou doou roupas usadas de seu filho para ela. Empatia começa com reparação e divisão de poder financeiro. 

Se colocarmos o que conhecemos hoje como sororidade sob a lente do pensamento da intelectual e feminista negra Patrícia Hill Collins, sobre interseccionalidade e identidade, fica ainda mais evidente que o que a mulher negra experimenta é a sororidade unilateral, já que nós sabemos que “raça, classe, gênero, sexualidade são processos que se constituem mutuamente, se apresentando materialmente na vida cotidiana das pessoas de maneiras complexas, como configurações muitas vezes contraditórias, que se sobrepõem, interagem e interseccionam”. 

As herdeiras deste modelo de sororidade são as mulheres negras de periferia e de candomblé. Vejo que são elas, as únicas historicamente submetidas à sororidade unilateral. Na diáspora, a sororidade floresceu, por exemplo no contexto da escravidão, entre as populações mais pobres e mais violentadas do país. Nos quilombos, aldeias e terreiros, onde mulheres eram capazes de, depois de levar 100 chicotadas, cuidar da pele, cabelo e filhos de mulheres brancas causadoras de suas mazelas. Tente imaginar uma mulher que é estuprada pelo senhor de Engenho à noite, servindo seu leite pela manhã para o filho de seu agressor. O que é isso? Resiliência? Espírito de sobrevivência? Não só isso. Por mais grotesco que se possa imaginar, no contato com a criança também se estabelecia uma relação de afetividade.

Portanto, no Brasil, são as mulheres negras aquelas capazes de transpor a dor e fazer o exercício profundo de amar outra mulher, ainda que esta seja a figura que, ao longo dos tempos, reproduz práticas que reforçam seu lugar de subalternidade. Sendo a agente capaz de promover humanidade, a mulher negra fez do que chamamos de  “sororidade” um meio para todas nós encontramos um caminho – uma forma para sobrevivência, uma estrada para realização pessoal, e um modo para o bem viver

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