O audiovisual e o direito a criar novos futuros

Por Leonardo Rossato

Na escola aprendemos a ler e escrever. Ao sermos alfabetizados pelas palavras, interpretamos e criamos sentidos, começando a compreender a complexidade que é estar no mundo, consigo e com os outros.

Porque não fazemos o mesmo com as imagens? Vivemos imersos pelo audiovisual na sociedade contemporânea. Os celulares e smartphones promoveram um enorme acesso ao audiovisual e um dos grandes desafios da educação, por exemplo, é inserir novas tecnologias nas práticas pedagógicas. Se entendermos a cultura e o direito à imagem como princípios fundamentais dos direitos humanos, necessitamos, então, sermos alfabetizados audiovisualmente. Tanto pelo ensino formal quanto informal, nas comunidades, movimentos sociais e culturais, grupos e projetos. Por mais intuitivo que o audiovisual se apresente, é necessário desenvolver práticas que incorporem o audiovisual como mais uma forma de produção de conhecimento, de troca de saberes, de reconhecimento de si e do Outro.

O artigo 215 da Constituição Federal de 1988, estabelece como função do Estado brasileiro, “o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais” (SOUZA, 2012).  Assim, o entendimento do audiovisual como direito básico em uma sociedade complexa e permeada por imagens, possibilita um maior engajamento social na disputa de valores coletivos, solidários, humanos. 

O projeto desta nova sociedade como encontro entre as diferenças precisará ser filmado.

Novos roteiros

E tem sido! A questão é que a atual facilidade tecnológica à produção não é acompanhada pelos diversos âmbitos da sociedade que recebem estas novas gerações, que podem criar estes novos futuros. Completamente  inseridas no mundo audiovisual, estas novas juventudes, intuitivamente, já produzem inúmeras imagens, refletindo seus cotidianos, apresentando suas individualidades e criando laços comunitários.

Ou seja, já há uma práxis audiovisual sendo realizada, por estas juventudes, que não está sendo cuidada por escolas, políticas públicas, instituições. 

A Diretriz 22 do Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH – 3) (2010) estabelece a: “Garantia do direito à comunicação democrática e ao acesso à informação para a consolidação de uma cultura em Direitos Humanos”. Ou seja, não apenas o audiovisual, mas o direito à comunicação e a promoção das expressões culturais favorecem à uma cultura de direitos. 

O audiovisual tornou-se essencial na contemporaneidade, não pela sua formação de consumidores (em sua grandíssima parte de produção estrangeira), mas também como uma própria forma de se colocar no mundo, de se entender nele, de praticar possibilidades de se pensar criticamente e criar soluções e partilhar valores.

O importante documentário “Eleições” (2018), dirigido por Alice Riff, mostra, por exemplo, as eleições de um grêmio estudantil e acompanha os debates entre as chapas, as diferenças políticas, as formas de se engajar conjuntamente em um projeto comum. 

O que fica evidenciado é este enorme desafio – humano – do equilíbrio coletivo e da indispensável necessidade de se estabelecer reflexões, parâmetros, propostas de como se firmar estes vínculos comunitários, isto é, fazer política. 

Em outubro de 2016, mais de mil escolas foram ocupadas em 22 estados brasileiros. Estudantes secundaristas ocuparam suas próprias escolas reivindicando contra a Proposta de Emenda Constitucional (PEC 241), que permitimos ser votada, junto a outras pautas, como a Reforma do Ensino Médio e mesmo questões locais. 

Compreender este enorme movimento orgânico passa pela necessidade destas vozes também ocuparem o seu direito à comunicação e ao audiovisual. Diferente de outros momentos históricos, os secundaristas, eles mesmos ou junto com apoiadores, puderam, antes de tudo, mostrar o seu próprio mundo. Há inúmeros vídeos postados em redes sociais sobre as ideias, formas de se organizar, de cuidar da escola, de construir politicamente este comum.  

Em vídeos como “Escolas de Luta SP 2015” ou “Primavera Secundarista” (2017), por exemplo, vemos como novas formas de se posicionar, de engajamento, de se organizar em torno de um projeto de sociedade que tenha como seu vetor, a cultura de direitos, passa por processos de como comunicá-lo.

Este direito a se comunicar que o audiovisual proporciona é o que, por exemplo, estes jovens secundaristas nos mostraram. O audiovisual como dispositivo que possibilita a criação de novas soluções para um mundo complexo integra transversalmente uma sociedade que pratica uma cultura de direitos. O direito ao encontro de imaginários que a arte, a cultura, a comunicação proporcionam.

Muitas produções

Muitos projetos se engajaram nestas práticas educativas audiovisuais. Desde os anos 1980 e 1990, temos grupos, oficinas, coletivos, que se organizaram em torno do acesso à produção e exibição audiovisuais.

O acesso facilitado aos meios de produção audiovisual, como câmeras mais leves e baratas até, contemporanemente, a possibilidade de se filmar por celular, contribuiu para a expansão destas práticas, espalhadas por todo país. Dentre os muitos projetos, podemos citar, por exemplo, as Oficinas Kinoforum, em São Paulo, a Semente Cinematográfica, na Paraíba, o Vídeo nas Aldeias, um dos precursores e mais importantes projetos de fortalecimento do audiovisual indígena no país.

Muitos destes, organizam-se em torno da Rede Kino – Rede Latino-Americana de Educação, Cinema e Audiovisual, que pretende compartilhar estas experiências pedagógicas audiovisuais, articulando audiovisual e educação em suas mais diversas possibilidades.

Uma dos principais ações que surgiu com capilaridade nacional, foi o  Inventar com a diferença. Iniciado em 2014, parceria entre a então Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República e o departamento de cinema da Universidade Federal Fluminense, o projeto propõe práticas pedagógicas a partir do audiovisual, com o intuito de “introduzir aos estudentes de diferentes lugares e idades uma certa relação com o outro e com o território que é propriamente uma invenção de um mundo comum, questões centrais para os direitos humanos” (MIGLORIN, 2014). 

O audiovisual permite, desta forma, práticas de alteridade, incorporando as técnicas de produção em prol de uma pedagogia do olhar. Não é apenas uma forma de “acesso à arte”, mas também e, principalmente, um processo de encontro de imaginários. O direito a sonhar e a recriar audiovisualmente novos mundos.

Diversas exibições

A exibição das produções audiovisuais brasileiras sempre foi o principal gargalo desta cadeia produtiva. Das salas de cinema aos vídeos-sob-demanda, a hegemonia de empresas estrangeiras emolduram catálogos de filmes e séries que estreitam as diversas possibilidades de escoamento destas produções.

E as exibições não-comerciais, públicas, comunitárias que podem ser promovidas em escolas, associações, grupos, movimentos? Os cineclubes sempre foram este espaço de encontro do público com o audiovisual. A prática cineclubista ativa debates, promove a reflexão e o diálogo, sendo um espaço no qual ouvimos o Outro. Também, ao contribuir com o aumento de repertório e conhecimento sobre o audiovisual, os cineclubes possibilitam a formação do olhar: no audiovisual vemos outros mundos, vemos outras pessoas. Contato este que oportuniza vermos a nós mesmos. 

No ensino formal, por exemplo, temos a modificação na LDB, que propõe a obrigatoriedade de fimes brasileiros nas escolas públicas. Sem regulamentação e execução, poderia ser um grande canal de formação de professores e estudantes para a prática audiovisual. 

Por outro lado, surgiram nos últimos anos, diversas plataformas brasileiras de vídeo-sob-demanda que, além da exibição individual privada, também permitem a exibição pública e comunitária, podendo ser utilizada por escolas, projetos e movimentos sociais, tais como a Afroflix, Libreflix, Videocamp, Taturana.

O direito ao acesso ao audiovisual é o direito a termos um olhar mais complexo sobre as diferenças que estamos entretecidos na sociedade. É um direito a ver melhor.

Créditos finais

No sábado, 24.08.2019, na premiação do Festival de Gramado, trabalhadores e trabalhadoras do audiovisual fizeram uma manifestação contra a normatização da censura e da homofobia pelo governo brasileiro, que suspendeu edital com filmes e séries de temática LGBTQ+, realizado pela ANCINE, para veiculação nas televisões públicas. Segundo relatos, os artistas foram agredidos com pedras de gelo, atingindo, inclusive, crianças. O longa cearense “Pacarrete” com Marcélia Cartaxo, que ganhou o prêmio de melhor atriz, foi o grande vencedor da noite. O diretor do filme, Allan Deberton, ao receber o prêmio de melhor filme, lembrou dos ataques realizados antes da premiação por parte do público e lembrou que é proponente de uma das séries censuradas, “Transversais”, sobre a vida de cinco transexuais no Ceará. Deberton finalizou sua fala com: “Eu vou fazer mesmo assim”.

Este direito ao audiovisual é o que pode contribuir para a pluridade de narrativas na sociedade, possibilidade de (re)conhecimento do Outro e de si, direito a sonhar, direito a inventar  novos futuros. Não há como parar a construção desta grande imagem plural e multifascetada do mundo e do Brasil. Este grande filme dirigido por todas estas existências que narram seus mundos não tem fim. E precisam ser exibidos em todos os lugares. Vistos, pensados e debatidos. Estas imagens serão produzidas mesmo assim.

Muito já foi dito sobre a relação entre o cinema e os sonhos, esta conexão entre as nossas imagens oníricas e as que produzimos no audiovisual. Ambas são processos de significação que, consciente ou inconscientemente, produzimos no mundo. Além de um direito, é uma necessidade encontrarmo-nos nas imagens que criamos. Busquemos fazer do mundo um lugar onde as imagens se encontram para que garantamos a existência do Outro e de nós mesmos. 

O audiovisual visto como direito humano fundamental é um necessário vetor na invenção de um novo mundo.

Referências

BARCELOS, Patrícia. Imagem-aprendizagem: experiências da narrativa imagética na educação. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação. Universidade de Brasília, 2015. Disponível em: http://repositorio.unb.br/handle/10482/19515. Acesso: ago, 2019.

PROGRAMA NACIONAL DE DIREITOS HUMANOS (PNDH – 3). Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República. Brasília: SEDH/PR, 2010.

SOUZA, Allan Rocha de. Os direitos culturais no Brasil. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2012.

MIGLORIN, Cezar… [et al.]. Inventar com a diferença: cinema e direitos humanos. Niterói: Editora da UFF, 2014.

ROSSATO, Leonardo B. História do Cinema e do Audiovisual. Brasília: Editora IFB, 2019.

REVISTA EDUCAÇÃO & REALIDADE. Dossiê Cinema e Educação, v. 33, n.1. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2008.

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