O Bem-Viver e a radicalidade de sonhar outros mundos

por Juliana Gonçalves

O conhecimento que emerge de memórias antigas. Aprendizados fincados em práticas comunitárias. “Bem Viver” é um nome novo usado para conceitualizar a cosmovisão de comunidades tradicionais que se organizavam a partir do coletivo. É um modo de vida que abarca a relação entre as pessoas, a natureza e o modelo econômico em sociedades que não tinham no capitalismo o modo possível de se organizar.

Enquanto conceito, nasce em berço andino, mas há correspondências do Bem Viver em muitas comunidades tradicionais e seus modos de organização antes da colonização sofrida na América Latina e no continente africano. Bem Viver é sumak kawsay em quéchua – idioma falado por muitos grupos indígenas da América do Sul – , é Suma Qamaña em aymara -língua de povo tradicional do mesmo nome existente na Colômbia, Equador, Bolívia, entre outros países.  É também o teko porã, guarani ou ainda o nhanderekó, do guarani mbya.

Boaventura de Sousa Santos (2010), professor e sociólogo português,  destaca que mesmo sendo um conceito nativo, o Bem Viver não é entendido pelas organizações indígenas como uma propriedade exclusiva dos indígenas, mas entendem como uma contribuição dos povos indígenas para todo conjunto das etnias presentes na América Latina.  Alberto Acosta, um dos teóricos do conceito e autor de  “O Bem Viver – Uma oportunidade para imaginar outros mundos” , afirma também que há correspondência do conceito no continente africano, como por exemplo na filosofia do ubuntu da África do Sul.

Acosta aponta que “não são ideias que foram construídas na academia, nas universidades ou partidos políticos, são ideias e valores, experiências e muitas práticas existentes em muitas comunidades”.

Para povos que viveram o massacre físico e epistêmico da colonização e escravidão, o Bem Viver é uma inspiração que nos permite sonhar outros mundos. O combate ao capitalismo ‎ganha destaque dentro da teoria do Bem Viver, como coloca a socióloga feminista colombiana  Magdalena León (2012), pois “marca uma ruptura com a centralidade do indivíduo, a superioridade do humano e com as noções de progresso, desenvolvimento e bem-estar em chave capitalista”.  Desta maneira, o Bem Viver propõe também abandonar a busca pelo “desenvolvimento”, porque considera que esse conceito vem carregado de violência e opressão em todas as esferas.

O capitalismo exige relações calcadas nas desigualdades para se desenvolver. Essas desigualdades são construídas a partir da hierarquização dos corpos proposta pelas ideias colonizadoras e escravocratas, que carregam consigo a perda da humanidade dos povos colonizados. Sendo assim, a construção de um novo marco civilizatório passa, necessariamente, pela criação de outro modelo econômico.

Ainda segundo Acosta (2016), o Bem Viver não é apenas uma alternativa, mas a única via que de fato pode se contrapor ao capitalismo. O autor embasa sua opinião ao criticar as experiências de socialismo real e de experiências progressistas e populares, principalmente na América Latina e a maneira distinta que os regimes político-econômicos lidam com a questão da diversidade dos povos e com a natureza. Diferentemente do socialismo, que apresenta a diversidade enquanto recorte dentro da luta contra o capitalismo, o Bem Viver traz a diversidade como fundamento.

Por meio de Acosta que fez parte do governo do Equador, em 2007 os Direitos da Natureza foram incluídos na Constituição do país, algo inédito no mundo. O Bem Viver enquanto conceito está presente também nas Constituições Federais tanto do Equador, quanto da Bolívia.

No entanto, não faltam críticas que apontem que esses governos usam o Bem Viver muito mais como um slogan do que pelo seu conteúdo revolucionário.

A feminista boliviana e socióloga, Silvia Rivera Cusicanqui acusa os governos de Evo Morales (Bolívia) e Rafael Correa (Equador) , de se valerem do termo sem uma implementação de fato. Falar do Bem Viver sem romper a lógica desenvolvimentista fez com que, segundo ela,  ambos os presidentes apliquem a fórmula extrativista colonial que expulsa comunidades de seus territórios, destroem florestas para a exploração de petróleo e construção de rodovias, entre outras violências em nome do progresso.

Além de ser debatido nesses dois países, lugares como Espanha, Alemanha e Brasil vem angariando seguidores do conceito. No Brasil, desde a grande Marcha das Mulheres Negras que ocorreu em 2015, por intermédio de uma lutadora do Pará, Nilma Bentes, as mulheres negras constroem o conceito do Bem Viver como elemento que se contrapõe ao modelo capitalista neoliberal.

Na Carta das Mulheres Negras de 2015, documento divulgado pela organização da Marcha dias antes das mulheres tomarem às ruas de Brasília em 18 de novembro, traz a reivindicação da teoria do Bem Viver alinhada com o que é destacado pelos autores citados anteriormente.

“A sabedoria milenar que herdamos de nossas ancestrais se traduz na concepção do Bem Viver, que funda e constitui as novas concepções de gestão do coletivo e do individual; da natureza, política e da cultura, que estabelecem sentido e valor à nossa existência, calcados na utópica de viver e construir o mundo de todas(os) e para todas(os). Na condição de protagonistas oferecemos ao Estado e a Sociedade brasileiros nossas experiências como forma de construirmos coletivamente uma outra dinâmica de vida e ação política, que só é possível por meio da superação do racismo, do sexismo e de todas as formas de discriminação, responsáveis pela negação da humanidade de mulheres e homens negros.”

O documento aponta para a mudança estrutural proposta pela teoria do Bem Viver já que, como apresenta a intelectual feminista bell hooks (2013), uma sociedade balizada pela ideologia da “supremacia branca, imperialista, capitalista e patriarcal” nunca pode ser justa.

Sendo assim, as sociedades eurocêntricas, alicerçadas nas ideais de branquitude, têm como base do seu desenvolvimento a concentração de poder, o acúmulo de riqueza, a exploração como sustento da sociedade, o domínio de outros povos e o massacre epistêmico de tudo que não é branco. Elementos que vão na contramão do Bem Viver.

A doutora em Psicologia, Maria Aparecida Bento em seu livro Psicologia Social do Racismo (2002), conta ao conceituar “branquitude” que o olhar do europeu transformou os não-brancos em um desigual e por vezes ameaçador “outro”.  “Talvez possamos concluir que uma boa maneira de se compreender melhor a branquitude e o processo de branqueamento é entender a projeção do branco sobre o negro, nascida do medo, cercada de silêncio, fiel guardião dos privilégios. O que se vê comprometido nesse processo é a própria capacidade de identificação com o próximo, criando-se, desse modo, as bases de uma intolerância generalizada contra tudo o que possa representar a diferença”, escreve a autora.

A lógica desenvolvimentista do capitalismo trouxe consigo a ocidentalização do mundo e a construção de estados desiguais que, ao desconhecer as alteridades,  transforma toda e qualquer diferença em desigualdade.

Vale lembrar que como um dos pontos em comum,  a experiência indígena na América Latina e a de negros e negras carregam profundas cicatrizes advindas do colonialismo europeu. Segundo a intelectual feminista  Lélia Gonzáles (1988), o colonialismo europeu se valeu do racismo científico para estruturar um modelo de superioridade branco europeu. Este modelo estrutural foi internalizado pelas culturas exploradas.

Essas experiências em comum foram ressignificadas por Gonzáles por meio da categoria “amerifricanidade”,  a combinação em território latino americano das diferentes identidades indígenas, africanas que modificam a cultura hegemônica por meio de suas vivências em comum.

Para Stuart Hall (2003) esse processo descrito por Gonzáles está atrelado a ideia do pós-colonialismo que não se restringe a descrever uma determinada sociedade ou época, mas reler a colonização como parte de um processo global essencialmente transnacional e transcultural.

As marcas deste processo violento são sentidas e reproduzidas naturalmente por toda a sociedade capitalista. Assim, a descolonização destas práticas sociais e um retorno às bases comunitárias são fundamentos do Bem Viver. O objetivo é construir um sistema econômico sobre bases comunitárias. Essa nova sociedade se dá longe dos valores das sociedades eurocêntricas e mais próximas aos valores civilizatórios ameríndios e africanos, como o cooperativismo, a ancestralidade, a memória, corporeidade e a oralidade.

Os valores civilizatórios africanos e indígenas contidos no conceito de Bem Viver estão na contramão de um modelo de desenvolvimento que considera a terra e a natureza apenas como insumos para a produção de mercadorias de rápido consumo e, mais rápido ainda, descarte. O Bem Viver assim como ressalta as cosmovisões africanas e indígenas, não entende que enquanto humanos estamos apartados da natureza, pelo contrário, somos parte dela.

Ao permitir sonhar outros mundos, o Bem Viver dá base para uma prática política que visa a desconstrução das opressões estruturais a partir do rompimento de práticas colonizadoras.

Desse modo, o termo nada tem a ver com o “viver bem”, ou o “viver melhor” que trazem em si o consumismo, o acúmulo de riqueza ou acesso às abundâncias que o dinheiro pode comprar com base em relações exploratórias. Pelo contrário, não há Bem Viver na opressão. O conceito surge com a missão de descolonizar a democracia a partir do rompimento de práticas colonizadoras que são alicerces do capitalismo.

O Bem Viver nos lembra que mudar esse sistema econômico e político não é utopia, mas sim uma necessidade.

Exemplos de práticas de Bem Viver

Como dito anteriormente, o Bem Viver não é um conceito novo. É um nome dado para identificar e agrupar práticas ancestrais que tinham como base o valor comunitário.

Como alternativa ao capitalismo, o Bem Viver não impõe que esse sistema seja totalmente superado para depois colocar em prática  seus conceitos. Abaixo, uma lista com algumas práticas que carregam em si elementos do Bem Viver: retorno ao fortalecimento comunitário, preservação da natureza, relações econômicas não exploratórias e respeito aos conhecimentos ancestrais.

1- Moeda social “sampaio”

Frente às dificuldades situacionais do bairro, como a grande concentração de população de baixa renda e em situação de vulnerabilidade social, as moradoras pensaram numa alternativa para fomentar a atividade econômica local e gerar renda para as pessoas da região, principalmente para fortalecer o protagonismo das mulheres e pequenos empreendimentos solidários e desenvolveram uma metodologia econômica que gerou bons resultados. A ideia foi criar uma moeda social para circular apenas dentro do próprio bairro, o “Sampaio” e com isso, passou a oferecer crédito para os moradores da região, usando como apoio a análise de um Conselho de Análise de Crédito (CAC), formado também por moradores da localidade.

2- Centro de Medicina Indígena da Amazônia

Inaugurado em junho de 2017, em Manaus. O projeto foi idealizado por João Paulo Barreto, da etnia Tukano, que é doutorando em antropologia pela Universidade Federal do Amazonas (Ufam).  Ele mesmo explica o que significa esse centro: “Estamos começando um trabalho, um modelo diferente daquele que a gente está acostumado a ver quando se fala de saúde, que é o modelo ocidental, de hospital. Aqui é um modelo diferente, pautado dentro dos nossos princípios. As pessoas vão ter a oportunidade de se tratar com as técnicas e as concepções indígenas”.

3-Xitique

É uma prática antiga que persiste até hoje principalmente na região sul de Moçambique, país do continente africano. Todo mês um grupo de mulheres entregam valores monetários de forma rotativa ao membro de um grupo. É um mecanismo que mistura poupança e crédito bancário. Este costume transformou-se numa alternativa para contornar os altos juros do empréstimo bancário e ainda permitir que as mulheres tivessem acesso a poupança quando, no passado, não podiam ter conta em banco.

Referências bibliográficas

ACOSTA, Alberto. O Bem Viver – Uma oportunidade para imaginar outros mundos. Editora Autonomia Literária Editora Elefante, 2016.
BENTO, Maria Aparecida Silva & CARONE, Iray (orgs). Psicologia Social do Racismo: estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil. Petrópolis, RJ, Ed. Vozes, 2002c.
DAVALOS, P. (2014).“Reflexiones sobre el Sumak Kawsay (el Buen Vivir) y las teorías del desarrollo”.  In Sumak Kawsay Yuyay: Antología del pensamiento indigenista ecuatoriano sobre Sumak Kawsay .
Gonzalez, Lélia. “Por um feminismo Afro-latino-americano”. Caderno de Formação Política do Círculo Palmarino, n.1, Batalha de Ideias:      AfroLatinoAmérica, 2011, pp.12-21.
HALL, Stuart  Da Diáspora. Identidades e Mediações Culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009. “Significação, representação, ideologia”, in Da Diáspora.
HOOKS, Bell. Ensinando a Trangredir: a educação como prática da liberdade. São Paulo: Editora WMF. Martins fontes, 2013
LEÓN, Magdalena. Redefiniciones económicas hacia el Buen Vivir: un Acercamiento feminista, AWID, 2012.
SANTOS, Boaventura de Sousa. “Refundación del Estado en América latina – Perspectivas desde una epistemología del Sur”, em ACOSTA, Alberto & MARTÍNEZ, Esperanza (orgs.). Abya Yala. Quito, 2010
Carta das Mulheres Negras de 2015, disponível em https://www.geledes.org.br/carta-das-mulheres-negras-2015/ Acessado em 20 setembro de 2018.

1 comentário

  1. Aline Sanches em 7 de novembro de 2018 às 17:26

    Texto super necessário

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