O senso comum não nasceu no boteco ou no almoço de domingo

Por Pedro Borges do Alma Preta, de São Paulo

Entender a origem e a formulação do senso comum é fundamental para compreender a manutenção do racismo na sociedade brasileira e formular estratégias de superação das desigualdades raciais. Para Pedro Borges, jornalista do Alma Preta, a ideia de democracia racial presente no Brasil é um dos maiores mitos presentes no senso comum brasileiro. Neste conteúdo especial para o Usina de Valores, Pedro reflete sobre o papel que as mídias negras e independentes têm na desmistificação desse mito no cotidiano do país e como a noção de senso comum foi construindo as relações raciais brasileiras.

Veja no vídeo:

A expressão “branco correndo é atleta, preto correndo é ladrão” faz parte do cotidiano brasileiro. Enraizada no senso comum, essa afirmação de cunho racista, está presente no nosso dia a dia, seja por meio da reverberação dela, seja nos programas televisivos policialescos, que não se cansam de entreter o público através do sofrimento negro.

O imaginário de que no Brasil “não há racismo”, e que esse é um problema restrito a sociedades como a norte-americana e a sul-africana também é outro mito presente no nosso cotidiano. Aqui, as relações pessoais entre negros e brancos deslocam o debate sobre o racismo da esfera política para o espaço privado. Quando alguma figura pública é acusada de racismo, por exemplo, costuma recordar a existência de amigos e parentes negros e assim se blindar de qualquer julgamento.

É de se destacar, porém, que apesar de todas as diversidades, o imaginário do negro como criminoso, a seletividade da justiça, o mito da democracia racial e o racismo se tornaram temas debatidos em nível nacional, talvez como nunca foram antes, graças à luta e à resistência do movimento negro.

Para que esse enfrentamento fosse exitoso, duas ações foram necessárias: conhecer a fundo o problema e montar estratégias precisas.

O senso comum, diferente do que muitos acreditam, não é algo que foi formulado ou ganhou corpo na mesa de bar, ou nos almoços familiares de domingo. Independentemente de onde surgiu, é importante destacar que a universidade deu o formato científico e o embasamento teórico necessário para que construções como essas sobrevivam no dia a dia.

A ideia de que o negro é um sujeito propenso ao crime remonta às teorias de Césare Lombroso, um psiquiatra e antropólogo italiano que traçou o perfil físico do criminoso na Europa, e publicou suas ideias na obra “As mais recentes descobertas e aplicações da psiquiatria e antropologia criminal”. Para desenvolver seus estudos, Lombroso analisou muitos crânios e corpos de pessoas para chegar a um suspeito padrão.

No Brasil, o médico Nina Rodrigues, no pós-abolição da escravatura, inspirado na teoria de Lombroso, descreveu o criminoso padrão com a presença de todas as características físicas negras nas suas obras “As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil” e “Os africanos no Brasil”.

As obras de Lombroso e Nina Rodrigues, embora rebatidas por outros cientistas, ecoam até os dias de hoje e já foram, inclusive, referências para a formação de policiais.

Em 2013, o vazamento de uma nota da polícia militar de Campinas, descrita pela corporação como um “deslize de comunicação”, que determinava a abordagem preferencial em “indivíduos da cor negra e parda”, mostra a atualidade de Nina Rodrigues.

Ana Luiza Flauzina, uma das mais brilhantes pensadoras negras da atualidade e autora do livro “Corpo negro caído no chão”, destrói os argumentos de Nina Rodrigues e mostra como o Estado e o capital,  amparados em teorias como essas, se armam para combater o grupo descrito como o inimigo interno: povo negro.

A outra afirmação presente no senso comum, respaldada pelo mito da democracia racial, permite que o ataque aos corpos e territórios negros seja naturalizado, sem qualquer questionamento do ponto de vista racial.

Gilberto Freyre, na obra “Casa Grande e Senzala”, rompe com as hierarquias biológicas entre negros e brancos, traz o debate sobre o racismo para o campo sociológico, sem superar, contudo, as hierarquias raciais.

A autenticidade do brasileiro, que segundo Gilberto Freyre seria tomado pela emoção, é o que permite a convivência entre o negro e o branco no dia a dia. Freyre tenta dar um tom positivo para a hierarquia entre a racionalidade branca europeia e a suposta emoção do brasileiro.

O europeu e o norte-americano, influenciados pela razão, seriam frios a ponto de não terem compaixão pelo negro e por isso, o segregariam. O brasileiro não. Aqui, imperaria a compaixão pelo próximo, e apesar do reconhecimento das diferenças, conviveriam juntos de maneira amistosa.

Freyre também consolida a ideia de que os antagonismos brasileiros de raça e classe seriam resolvidos na esfera privada e as diferenças no convívio entre negros e brancos seriam então diluídas pela compaixão e a vivência cotidiana.

Essas duas ideias dificultam qualquer possibilidade de um movimento antirracista que paute o assunto na esfera política, afinal, não existe racismo, e se existe, está restrito ao campo privado.

Para chegar a essas conclusões, sobre a perversidade e a atualidade da teoria de Nina Rodrigues, sobre as barreiras e dificuldades postas pelo mito da democracia racial, foi necessário compreender o papel da universidade na formulação e cristalização dessas ideias.

Entender a singularidade e a raiz do senso comum permitiu ao movimento negro traçar uma das estratégias mais bem sucedidas de enfrentamento ao racismo: a política de cotas.

A entrada de jovens negros periféricos nesses espaços é a possibilidade de se construir uma nova forma de pensar, fundamentada em novos princípios. Se coube à universidade parte do papel de cristalizar o estereótipo do negro como criminoso, cabe a ela também a função de construir novos paradigmas.

O incômodo da elite branca em dividir com jovens negros das periferias o único serviço público que ela ainda usufrui fez a discussão sobre cotas nas universidades transformarem o racismo em debate de massa, o que colaborou para enfraquecer o mito da democracia racial.

Entender o senso comum e o racismo a fundo permitiu ao movimento negro construir uma estratégia bem sucedida, de combate ao genocídio e de ataque ao mito da democracia racial.

Projetos como o Usina de Valores, guardadas as devidas proporções, têm objetivos e possibilidades próximas a das cotas, por serem iniciativas raras, de fôlego, que permitem a troca de experiências entre ativistas, articuladores, pesquisadores de diferentes regiões do país com o intuito de se debruçar sobre o senso comum.

É a partir de propostas como essa, que permitem analisar a fundo os problemas sociais e incentivam o momento de pensar estratégias de superação, que surgem ideias e conceitos mobilizadores em prol de uma nova realidade.

Leia mais:

Segundo encontro em SP do Usina de Valores discute senso comum e racismo

Afrotransfeminismo: travestilizando o movimento negro e racializando o transfeminismo

“A colonização é uma narrativa”, afirma Henrique Vieira

Deixe um Comentário





três × 3 =