Carlinhos Santos

Os novos migrantes na terra da imigração

Por Carlinhos Santos

Uma pergunta recorrente em Caxias do Sul, a principal cidade da Serra Gaúcha, é “de que família tu é?” Assim, com deslize no plural e sotaque típico. A indagação quer saber de que lugar – da Itália – são os antepassados do interlocutor. Nos últimos anos, uma nova pergunta vem se instaurando na cidade e região: “de que país – de África – tu vem”?

Desde 2012 Caxias do Sul e diversas cidades da Serra têm acompanhado a chegada dos novos migrantes. Entre 2015 a 2017, o Núcleo de Estudos Migratórios da Universidade de Caxias do Sul (UCS) apontou que a Serra Gaúcha recebeu 2.820 imigrantes dos cinco continentes. São 1.485 vindos da América, 39 vindos da Ásia, 9 da Europa, e 1 da Oceania. E tem ainda 1.286 vindos de África, entre ganeses, senegaleses, haitianos. Isso sem contar a recentíssima leva de venezuelanos.

A ideia de um território majoritariamente composto por descendentes de italianos, como se fosse uma Europa brasileira, começa a ser pigmentado pelos novos imigrantes. Cor e matiz de tensão, revelam alguns preconceitos velados e expostos até mesmo por figuras públicas. Em 2014, o então prefeito de Caxias do Sul, Alceu Barbosa Velho (PDT), referia-se ao um grupo de ganeses que chegava à cidade como “bando”. E chegou a questionar que tipo de doença se estes novos moradores poderiam trazer consigo.

Em 2019, o misto de coexistência e embate pela construção da dignidade do convívio, atravessa a realidade da existência, inserindo o diálogo entre as tais famílias tradicionais da cidade. Frutos das novas migrações africanas e de outros continentes.

“Antes de nós chegarmos aqui, ninguém era brasileiro nessa cidade. Eram italianos, alemães, poloneses. O difícil disso, e o óbvio, é que no Brasil o negro não é bem visto. O negro no Brasil é “mais claro” – avalia o senegalês Demba Sokhna, 31 anos, há quase seis anos instalado na Serra Gaúcha, que é formado em Letras e Ciências Humanas no Senegal, domina seis idiomas e, em Caxias, tem um estúdio instalado numa galeria do Centro da cidade, onde corta cabelos e vende roupas e artesanato típicos de seu país.

Demba skhna – foto: Carlinhos Santos

Antes de abrir seu próprio negócio, Demba trabalhou como montador de molas e tambores de caminhão numa indústria metal mecânica, principal foco econômico local. Um trabalho braçal, que exige mais esforço físico do que a capacidade intelectual que ele dispõe e que poderia inseri-lo melhor no país. Eis um dos embates dos novos migrantes na terra onde os primeiros italianos chegaram em 1875 e encontraram a promessa de fartura e riqueza.

Demba e muitos outros senegaleses, ganeses e haitianos têm no Centro de Atendimento ao Migrante – CAM – referência para seu trânsito, acolhimento e afirmação na Serra. Mantido pela Congregação das Irmãs Carlistas Scalabrinianas, o CAM trabalha com quatro verbos/vetores: acolher, promover, proteger, integrar. Para pensar a cidade e a região que se busca, para refletir sobre o embate entre incluir e excluir.

“Isso é responsabilidade de todos, mas falta essa consciência coletiva”, diz a atual diretora do CAM, Irmã Celsa Zucco, da terceira geração de uma família de descendentes italianos. Outra figura quase emblemática do CAM é a Irmã Maria Do Carmo Gonçalves. Ela esteve à frente do Centro de 2010 a 2018. Seu nome é pronunciado pela maioria dos novos migrantes da Serra com certa devoção. E sua articulação e pra lá de focada.”

“No início, em 2012, houve um estranhamento com relação ao diferente, ao outro idioma, outra cultura, outra religião. Um universo desconhecido. Do ponto de vista negativo, houve uma reação racista em relação a estas pessoas. Mas há um ponto positivo, que foi a extrema solidariedade e acolhimento. As duas coisas andam juntas”, diz Maria do Carmo, que é bacharel em Filosofia, mestra em Ciências Sociais e atualmente está fazendo doutorado na mesma área, com uma pesquisa sobre cultura e identidade com enfoque sobre as relações entre religião e migrações.”

Essa instabilidade entre acolhimento e rejeição aos diferentes, atravessa o cotidiano dos novos migrantes na Serra. E, ao mesmo tempo, sinaliza a reorganização da comunidade para essa inclusão com dignidade, na perspectiva de uma coexistência.

Criado em 2015 pelo imigrante senegalês Cheikh Mbacke Gueye (Cher) uma campanha intitulada Senegal, Ser Negão, Ser Legal, deu origem a um coletivo que une cidadãos de lá e de cá em defesa da integração. Entre ações focadas em áreas de educação e comunicação, desde agosto de 2016 o Coletivo também passou a oferecer, por meio de professores voluntários, oficinas de Língua Portuguesa na Faculdade Murialdo. Atualmente, são realizadas duas turmas de Língua Portuguesa e uma turma de LID e Metrologia.

“Vejo como um exercício de alteridade muito importante. Imagino os percalços que existem a partir do momento que eles chegam aqui, em relação a documentação, em relação a busca de trabalho, tendo a língua como uma das principais barreiras. Eu entendo, também, como uma experiência de troca e soma de conhecimentos, que, para mim, tem um significado bastante expressivo”, diz a jornalista Juliana Rossa, que é doutora em Letras, pesquisadora sobre imigrações internacionais contemporâneas com foco na religião dos imigrantes senegaleses.”

Ações de entrosamento e acolhida como as citadas começam a mudar a paisagem sociocultural da Serra. O ganês Mustapha Ibrahim, 32 anos, chegou a Caxias há cinco anos. É músico percussionista e dançarino. Em 2017 ele fez um estágio na Cia Municipal de Dança de Caxias do Sul e atualmente é um dos integrantes do Sabar África, grupo que tem feito os movimentos da dança e o reverberar do tambor movimentarem a cena artística local. Também trabalha como colocador de vidros.

Grupo Sabar África – foto: Rodrigo Morales

“Vim para fazer minha vida aqui no Brasil. Quero dar aulas e dança. Mas ainda tem muito branco que não se aproxima de preto. Sinto e fico triste com isso. Quando um branco chega à África não é tratado assim. Todo mundo é igual”, pondera Mustapha.”

Essa possibilidade de trânsito com liberdade de pertencimento a um contexto social, depende em muito, de legislações específicas. Este é um dos principais desafios para a acolhida dos novos migrantes ultrapassarem o nível da solidariedade.

“Quando esses migrantes chegaram não se sabia como trata-los, não havia um discurso específico. E até hoje não se tem isso muito certo. Por isso as pessoas expõem tantos preconceitos. O Poder Público não fala contra, mas não faz nada a favor. Não existe nada em termos de Políticas Públicas para este segmento. Parece que a proposta é não tratar bem para que não fiquem por aqui”, analisa a vereadora Denise Pessoa (PT), que é integrante a Comissão dos Direitos Humanos da Câmara de Vereadores de Caxias do Sul.”

Essas barreiras legais se inserem no contexto da nova ordem liberal mundial e estimulam xenofobias, derivando em violência, discursos de ódio e propostas de etnocentrismo e gentrificação.    

“As leis migratórias precisam ser revistas. O contato com outras culturas nos enriquece. A nova Lei de Migração é baseada nos Direitos Humanos. A antiga tinha o viés da Segurança Nacional. E essas ações têm que ser em conjunto, nos coletivos, com entidades civis e religiosas, alinhados às políticas públicas”, acredita Irmã Celsa, do CAM.”

Esse debate público começa a ser organizado em Caxias do Sul. Em junho deve ser realizada uma Audiência Pública para propor estratégias de construção de Políticas Públicas para os migrantes. Um encontro que será feito em plena Semana da Imigração.

“Precisamos acabar com certos estigmas de que os migrantes chegam para roubar postos de trabalhos, aproveitar-se dos serviços públicos. Quanto melhor eles forem incluídos pela sociedade, melhor para a sociedade. Essa regularização é uma questão de dignidade humana. O despreparo para trabalhar esse tema é local, estadual e nacional”, diz Fabiano de Moraes, Procurador da República que atua em Caxias.”

Os desafios de regularização contextualizam a forma como estes trabalhadores são inseridos no mercado de trabalho. O poliglota Demba Sokhna sonha em ver seu diploma reconhecido para buscar novas frentes de atuação. Mas trabalhos pesados, insalubres ou a informalidade do comércio são ocupações recorrentes para outros senegaleses, ganeses, haitianos e, mais recentemente, venezuelanos.

Não à toa a Avenida Júlio de Castilhos, principal do Centro caxiense, está tomada por ambulantes dessas nacionalidades. E eles são alvos frequentes de reações do comércio formal e suas entidades de classe. “Temos que limpar o centro”  é o perigoso jargão recorrente desse segmento.

“Essa informalidade se insere na crise da economia do país e do mundo, não é um problema dos imigrantes. O trabalho é um valor essencial. E, salvo o voto, a  lei garante direitos iguais para brasileiros e imigrantes”, afirma Juliana Camelo, Mediadora Intercultural do CAM, apontando caminhos para uma harmonização desses contextos: “Ações culturais que afirmem a diversidade são fundamentais”.

Assim, o desafio é os filhos dos antigos migrantes estabelecerem um diálogo de igualdade com os que estão em transito no planeta por causa das novas movimentações humanas contemporâneas. E interlocução é fundamental.

“A principal dificuldade é a da comunicação, do idioma. Há uma pauta bem antiga para resolver esta questão da língua, que impede muito a integração. O mesmo se dá nas relações de trabalho, há muita exploração. Temos um caminho muito longo para promover a inserção dos migrantes. A globalização exige essa mão de obra”, diz Irmã Maria do Carmo.”

“Para a pesquisadora, a nova configuração da sociedade não pode ser pensada nos limites de uma cultura única, homogênea e hegemônica, onde não há espaço para o diferente: “Esse é um ponto de crise muito forte em Caxias, construída a partir da história da migração italiana. E a identidade é uma questão mutável. O grande desafio é fazer crescer essa consciência de que vivemos em uma sociedade que muda rapidamente. É  importante reconhecer essa mudança para não criar guetos e construirmos uma sociedade mais saudável.”

Embora instalados numa galeria sem saída no centro de Caxias, os senegaleses Billi Abdoulahat Nadiaye, Cheik Gau e sua esposa Kahdy Top sinalizam contextos de inserção. O primeiro está há oito anos no Brasil, preside a Associação dos Senegaleses em Caxias e tem uma loja que é ponto de encontro, espaço para conselhos e até orientações disciplinares aos coirmãos. Já o casal mantém há sete meses, ao lado da loja de Billi, o restaurante de comida típica Sope Serigne Fallou. Servem um prato especial a cada dia. São 30 tipos de comidas diferentes no menu. Diversidade para ser saboreada.

“Temos que nos ajudar, ajudar a todos, darmos bom exemplo de convívio. Assim vamos respeitar e ser respeitados”, afirma Billi, que também toca no grupo Sabar África. Esse convívio é esperança de Demba: “Temos que nos aproximar pela música, a dança e a arte. Esta é conexão que ajuda na inclusão, diz ele, ecoando uma afirmação de Mustapha: “Tenho feito muitos novos amigos aqui.”

“A abertura dos novos espaços pelas comunidades migrantes é muito positiva, há um reconhecimento da contribuição que têm dado à região e ao Brasil de um modo geral, com articulações sociais e políticas, construindo interlocuções com organizações da sociedade civil e das igrejas. Isso repercute positivamente para a sociedade em geral. Mas ainda há uma questão geopolítica mundial que interfere no reconhecimento da dignidade humana e da cidadania. Milhares de pessoas morrem todo ano ao tentar se deslocar pelo mundo, atravessar fronteiras, em busca de novas condições de vida. Precisamos restabelecer pactos de convivência. Se o mundo se move, se não há mais fronteiras econômicas, se o capital circula livremente, por que as pessoas não podem ter esse direito? Somos iguais, somos humanos”, diz a Irmã Maria do Carmo.

Agora, ao que parece, a pergunta que cabe aos antigos e novos migrantes é: “Para onde vamos?

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