Arte de fundo laranja e amarelo, com texto que diz "Ouvir é necessariamente des-orientar-se. Por Joabe Santos". No rodapé estão os logos do Usina de Valores, do Instituto Vladimir Herzog, do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos e do Governo Federal.

Ouvir é necessariamente des-orientar-se

Por Joabe Santos

Ouvir é necessariamente desorientar-se. Mesmo que seja por um curto espaço de tempo, quando de fato ouvimos um outro, é necessário abrir mão de algumas de nossas certezas mais arraigadas. Não por acaso tememos tanto os conflitos. Primeiro porque cremos serem um sinal de que algo não vai bem, o que não é necessariamente verdade já que os conflitos são intrínsecos à experiência humana. Segundo, porque em meio a um conflito não queremos ser coniventes com discursos que ferem nossos valores pessoais, mas principalmente que deslegitimam acordos coletivos já consagrados. Longe de nós tolerar ideologias e políticas que destroem direitos de pessoas com as quais nos importamos. 

Por outro lado, nem sempre percebemos que apesar da violência própria do discurso dos nossos interlocutores, e para além das ideologias que lhes dão sustentação, existem pessoas. Pessoas que também temem abrir mão do que lhes oferece respostas, pessoas tão humanas quanto nós. Pessoas que na prática também sentem uma ameaça ao seu modo de vida, pessoas que também atacam quando percebem que aquilo que legitima seus direitos está em iminente risco de se desfazer. 

É possível que em algum você já tenha pensado “Lá vem mais um discurso do tipo blogueirinha gratiluz. Conversa de quem desconhece a realidade do povo preto, pobre e periférico. Preguiça!” Não desista, deixe-me te desorientar um pouco mais. Provavelmente será útil a todos nós. 

Ao dizer que nossos conflitos em alguma medida são muitas vezes uma disputa entre pessoas que lutam para garantir seus modos de vida, não ignoro o fato de que, essas disputas também acontecem entre pessoas que como eu querem garantir o direito de ir e vir sem serem assassinados pelas forças policiais apenas por serem negras. 

Sim, eu sei, é assimétrico, sinto muito é desproporcional! É fato “não dá pra conversar com fascistas”! No entanto, não me refiro ao momento em que a violência explode numa “operação” policial ilegal na Comunidade, ou quando nos invade a ira diante de um ato racista. Me refiro ao processo que se constitui a partir da nossa incapacidade de conflitar com vistas à construção de consensos. Falo dos diálogos possíveis e incipientes, mas que já nascem mortos por nossa imperícia de reconhecer os afetos negativos que são mobilizados em nós pelos discursos de ódio que nos assaltam. 

Como bem disse o dramaturgo e poeta romano Terêncio “Nada do que é humano me é estranho”. A questão é que nem sempre reconhecemos a humanidade do outro quando este ameaça por ação ou omissão nossa luta pelo Bem Viver. 

Isso me fez lembrar a filósofa Hannah Arendt que em 1960 fora enviada como repórter à Jerusalém para cobrir o julgamento de Adolf Eichmann – carrasco nazista responsável por gerir a deportação e transporte em massa de judeus para os campos de concentração.  

Passados três anos desde aquela experiência, Arendt lança “Eichmann Em Jerusalém “,  livro onde vai cunhar a expressão “Banalidade Do Mal”. A partir desta noção afirma que Eichmann não era um demônio, ou um inocente sob influência maligna, mas um ser humano incapaz de julgar. Responsável por seus atos, mas incapaz de julgar suas próprias escolhas. 

Grosso modo a filósofa disse que delírios autoritários, fascismos, ou totalitarismos não nascem de experiências inumanas, mas de subjetividades bem humanas, como a minha, como a sua. O mal é banal porque pode ser perpetrado ou apoiado por qualquer um, do senhor aposentado que descobriu os grupos de whatsapp ao governante idiotizado pela sanha de poder e autoproteção. O problema é que passamos a agir como se o outro que ameaça nossa existência fosse menos humano que nós e isso é óbvio, destrói toda e qualquer possibilidade de escuta e construção de “clareiras dialogais” em meio a densa massa de incompreensão e ódio que tanto denunciamos.   

Ouvir o outro é necessariamente desorientar-se, mesmo que por tempo determinado. Desorientar-se causa medo, medo não reconhecido e não verbalizado, nos coloca sempre na defensiva e gente na defensiva mata para não morrer. Nada mais humano!  

Precisamos de algumas pequenas e intencionais experiências de diálogos desorientadores. É verdade: não há garantias de que isso provocará macro-mudanças. No entanto, não seriam as micropolíticas do cotidiano uma boa maneira de continuar lutando pelo mundo que queremos? A propósito, foi o periférico Jesus De Nazaré na Palestina ocupada pelo Império Romano que ensinou uma micropolítica de resistência à desumanização quando disse Assim, em tudo, façam aos outros o que vocês querem que eles lhes façam…” 

[Mt 7:12 NVI]

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