Por um cuidado que não seja fardo, e sim fonte de luta coletiva
Por Renata Aquino*
Precisamos construir redes de apoio e políticas públicas que priorizem a saúde mental daquelas que se dedicam ao cuidado, para que se reconheçam e sejam reconhecidas enquanto sujeitos de direito, com desejos e vulnerabilidades – e não apenas como pessoas “fortes” e “sacrificadas”
Não é novidade dizer que as mulheres assumem a maior parte das responsabilidades de cuidado. Sabe-se que frequentemente são elas as pessoas encarregadas por manter a casa em ordem, cuidar das crianças, gerenciar o orçamento, fazer as compras, preparar as refeições e limpar o lar, dedicando quase 10 horas a mais por semana que os homens para estas tarefas, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio Contínua 2022, do IBGE. Além disso, representam maioria na realização de trabalhos remunerados relacionados ao cuidado, como faxina, acolhimento e educação infantil, incluindo aí a educação não formal, em redes socioassistenciais, por exemplo.
Vale notar, no entanto, que há um aspecto menos destacado desta realidade: a sobrecarga, os turnos dobrados ou triplicados não impedem que essas mulheres também componham os grupos mais engajadas na luta pelos direitos humanos. Dados do Instituto Vladimir Herzog sobre a participação na Usina de Valores, uma metodologia de educação popular para mobilização de bases comunitárias em periferias do Brasil, demonstram que são mulheres mais de 80% de participantes destes percursos formativos, sendo que 40% afirmam fazer parte de algum coletivo.
Nas eleições de 2022, também foram elas que fizeram a diferença na derrota de Jair Bolsonaro. Enquanto muitos ainda debatiam fake news e assuntos irrelevantes, como a “mamadeira de piroca”, elas sabiam o que estava em jogo. Novamente, na eleição municipal de São Paulo de 2024, foram elas quem mais rejeitaram o candidato “ex-coach” que representava a radicalização da direita, que politizou dizendo-se não político. As mulheres, em especial as que estão nas periferias, não se mobilizam em torno de prédios de quilômetros. O que realmente importa para elas é o preço da carne, a falta de creches, a segurança alimentar e o acesso à saúde. Isso é política da vida cotidiana.
Ora, ora, temos um Sherlock Holmes! Sem grandes fatos novos até aqui para as mulheres que estão na vida cotidiana, cuidando e dando condições de vida para suas crianças, seus adolescentes, seus idosos e até para marmanjos — seus maridos que, para ir no médico, precisam das mulheres, por não saberem quando começou a dor, quais remédios tomou, onde está a cueca, a meia… a vida. Mas há uma constatação inédita, sim, para a maioria: Cuidar é uma forma de resistência. É preciso olhar para o cuidado como um saber que se constitui na experiência da vida e que dá sentido a uma comunidade. É o cuidado que garante a dignidade dos nossos.
“É preciso olhar para o cuidado como um saber que se constitui na experiência da vida e que dá sentido a uma comunidade. É o cuidado que garante a dignidade dos nossos. “
A verdade é que os direitos sociais não caem do céu. Cada conquista, como o direito ao voto ou a criação de creches públicas, foi resultado de muita luta. E quem melhor do que aquelas que sempre estiveram à frente dessa batalha para compreender o desafio cotidiano? Cuidar é, sem dúvida, uma forma de resistência! Mas a pergunta que não quer calar permanece: quem cuida de quem cuida? Essa questão vai além de uma retórica; é um chamado à ação. Precisamos construir redes de apoio e políticas públicas que garantam que aquelas que se dedicam ao cuidado tenham sua saúde mental priorizada. Segundo relatório da ONG Think Olga, 45% das mulheres brasileiras tinham diagnóstico de ansiedade, depressão ou outro transtorno mental em 2023.
O sofrimento psíquico não é apenas um obstáculo individual; ele pode se manifestar como um fardo coletivo, impactando a capacidade de engajamento e resistência. É essencial que essas mulheres tenham acesso a espaços de escuta e apoio emocional, onde possam processar suas experiências sem serem vistas apenas como “fortes” ou “sacrificadas”.
Essa relação entre o sujeito e seu desejo é complexa. Muitas vezes, quem cuida se vê preso: o que deveria ser uma expressão de cuidado e resistência, torna-se um fardo. As expectativas externas pelo cuidado podem distanciar o sujeito de suas próprias necessidades. Não podemos, enquanto sociedade, desconsiderar a importância de espaços seguros para falar sobre isso em segurança e acolhimento.
O sofrimento psíquico não é apenas um obstáculo individual; ele pode se manifestar como um fardo coletivo, impactando a capacidade de engajamento e resistência. É essencial que essas mulheres tenham acesso a espaços de escuta e apoio emocional, onde possam processar suas experiências sem serem vistas apenas como “fortes” ou “sacrificadas”.
À medida em que essas mulheres possam ter suas vulnerabilidades e desejos acolhidos, com liberdade para expressar o que realmente sentem, a luta é fortalecida de maneira saudável e sustentável. Afinal, não precisamos de mais mártires, mas sim de parceiras que possam equilibrar forças, garantindo que o cuidado não se transforme em um peso, mas em uma fonte de luta coletiva.
É por isso que, com a metodologia de educação popular Usina de Valores, buscamos construir espaços seguros de trocas, nos quais sejam reconhecidas e valorizadas as subjetividades de cada pessoa. Acreditamos que, só assim, podemos fortalecer as ideias de pertencimento, convivência e participação.
Cuidar de quem cuida é fundamental para assegurar que os direitos humanos se concretizem na vida cotidiana dessas mulheres. Dessa maneira, tais direitos podem ser mais do que uma ideia efêmera e se tornarem um alicerce social, orientando uma sociedade na qual todos e todas se reconheçam e sejam reconhecidos/as enquanto sujeitos de direito.
*As fotos são de encontros formativos da Usina de Valores, metodologia de educação popular em direitos humanos do Instituto Vladimir Herzog.
*Renata Aquino é pedagoga, especialista em psicossociologia da juventude e políticas públicas e psicanalista. Está na coordenação das ações de educação não formal na área de Educação em Direitos Humanos do Instituto Vladimir Herzog e atua como assessora em programas e projetos sociais de juventude. Possui experiência profissional nas áreas de assistência social, educação e direitos humanos há 14 anos, com crianças, adolescentes, famílias e profissionais.
Maravilhosos o texto. Renata esta frase resume o que penso ser de fato o foco:
“As mulheres, em especial as que estão nas periferias, não se mobilizam em torno de prédios de quilômetros. O que realmente importa para elas é o preço da carne, a falta de creches, a segurança alimentar e o acesso à saúde. Isso é política da vida cotidiana”.
Texto muito necessário, lúcido e cheio de reflexões importantes sobre o que é ser mulher e os vários papéis que desenpenhamos e as vezes a que custo. Parabéns!
Uma reflexão necessária principalmente para nós homens, que vivemos nossas histórias “… em brancas nuvens, e plácido repouso…”(Francisco Otaviano). Enxergo em cada parágrafo um aprendizado e sinto-me envorganhado por ainda milhares de pessoas ainda não perceberem o quanto somos medíocres.
Feliz pela oportunidade e a magnitude de beber das sábias palavras e rever todos o meus passos, aprendendo a aprender, que é de gole em gole que se vive a vida, cuidando de quem cuida e ampliar nossos saberes.
Texto muito bom e reflexivo. Precisamos de mais políticas voltadas para aquelas que cuidam e menos para aqueles que só pensam nos prédios de quilômetros.
Por mais redes de apoio e políticas públicas para cuidar de quem cuida!
Parabéns pelo texto!