A importância de ouvir outras mulheres e a si mesma

Com Tatiane dos Santos Duarte 

“Somos descendentes de gerações de mulheres que nunca foram ouvidas plenamente”, afirma a historiadora, mestre e doutora em Antropologia Social Tatiane dos Santos Duarte, colocando a si mesma também como mulher, mãe e trabalhadora. A convite do Usina de Valores, ela explica como este silenciamento atua e propõe transformações por meio da Escuta Ativa, um dos valores do Usina, projeto de Educação em Direitos Humanos.

Segundo Duarte, as mulheres foram sistematicamente silenciadas em diferentes lugares e tempos da história Ocidental. “Tiveram suas biografias, ancestralidades e feitos tornados ausentes históricos, foram qualificadas como apêndices dos grandes personagens masculinos”. Além disso, nunca foram ouvidas plenamente, pois suas falas “deveriam ser autorizadas e sempre orientadas pedagogicamente para a retidão, o recato, a contenção, qualidades e qualificativos que as diferenciava do gênero masculino, titular da política e do espaço público”.

Reparação histórica

Duarte situa conquistas e mudanças do último século, quanto ao acesso à educação, à formação profissional e ao mundo do trabalho, mas destaca silêncios ainda no contexto atual: “Saímos para trabalhar e os homens em ampla maioria continuam não compartilhando tarefas e não se responsabilizando como igualmente cuidadores. Travamos, assim, duplas e triplas jornadas, nos dividindo entre trabalho remunerado e o trabalho do cuidado não remunerado, sobrecarregadas, exaustas e adoecidas”. 

Para ela, a domesticidade e a tarefa do cuidado como atributos femininos acabam aprisionando as subjetividades das mulheres nas subalternidades, violências e violações. Cita Silvia Federici ao dizer que os corpos são atestados apenas para reprodução e para a produção lucrativa no contexto do sistema patriarcal capitalista*. Defende assim, a urgência de que escutem a si mesmas e às demais mulheres para construir formas mais plenas de existir.

A escuta ativa de mulheres, mães e trabalhadoras seria, portanto, “ato de reparação histórica às nossas avós, mães, às mulheres que estão nos anais da história como adendos ou como corpos reprodutivos, escravizados, violados ou envoltos na naturalização do mito do amor materno”.

Como escutar

Duarte lista os diversos ruídos que não permitem uma escuta real e sensível: “O que escutamos em meio a tanto barulho externo? A tantas vocalizações internas que não são proferidas?  Quem escuta as mulheres sem tipificá-las? E mulheres mães? Quem as escuta sem palpites? Em meio aos ruídos de suas maternagens? Como somos escutadas? Ainda como “boas mães, boas filhas, as boas esposas?”

A historiadora e antropóloga ressalta que falas sobre precarização do trabalho, exaustão pelo cuidado exclusivo e dificuldades do cotidiano materno são caladas pela culpa e relativização das dores. Repete-se ideias como “Aguenta firme, guerreira”, “Ser mãe é padecer no paraíso”. A organização social atual, explica, valoriza o silenciamento da dor, o que inclusive aprisiona mulheres em uniões com violadores, que por sua vez gritam e insultam constantemente. Como contraponto, defende uma escuta comprometida com o rompimento destes pactos de silêncio:

“A escuta não pode ser apenas uma ferramenta de trabalho que ouve sem contexto, significado, desconsiderando conjuntura, biografia, as relações em uma sociedade estruturalmente desigual. Deve, portanto, estar metodológica compromissada com o acolhimento do que se escuta, a humanização de quem fala e a interseccionalidade corporificada nas mulheres, mães e trabalhadoras, como sujeitas de sua história e da história, habilitadas para se expressar através de autonomia e autodeterminação sobre si, seus desejos, receios, suas vidas.”

Atividade do Usina de Valores em São Paulo

Espaços de escuta e de criação de novas formas de existência

Duarte propõe mais espaços de escuta ativa entre mulheres:

“Devemos criar espaços de escuta e de diálogo comunitários que rompam tantos não-ditos para fazer encontrar nossas formas de maternagens. Espaços de escuta e de debates sobre as normas exigentes da perfeição, dos grilhões postos no maternar, na violência da obrigação de cuidar, para então pautar e demandar as urgências que nos atravessam em nossas muitas camadas.”

A escuta, para Duarte, começa por ouvir a si mesma. “Sair da tirania do modelo patriarcal sobre ser mulher e ser mãe é promover cotidianamente a escuta ativa de nós mesmas e jamais naturalizar o preço que pagamos sozinhas para conciliar mundos, demandas, exigências”, completa.

Duarte aposta, assim, na construção de experiências coletivas que fomentem relações de cuidado justas e que não coloquem as mulheres num espaço de solidão como parte do ser mãe. Valorizar as subjetividades e potencialidades por meio da escuta pode ser caminho, acredita, para produzir novas formas de existir e estar no mundo, com promoção do bem viver, igualdade e pleno acesso a direitos humanos.

*Sistema patriarcal: O patriarcado é um sistema social baseado em uma cultura, estruturas e relações que favorecem os homens, em especial o homem branco, cisgênero e heterossexual. Muitas autoras, como a citada Silvia Federici, ampontam uma simbiose entre o sistema patriarcal e o sistema capitalista, na qual um sistema se beneficia do outro.

Para ler mais:

Artigo: “Escuta ativa de mães, mulheres e educadoras”, por Tatiane Duarte

Dicionário Feminino da Infâmia: Acolhimento e diagnóstico de mulheres em situação de violência, organizado por Elizabeth Maria Fleury-Teixeira e Stela Nazareth Meneghel (Editora Fiocruz, 2015)

Esperança Feminista, de Débora Diniz e Ivone Gebara (Rosa dos Tempos, 2022)

O Ponto Zero da Revolução: Trabalho doméstico, reprodução e luta feminista, de Silvia Federici (Editora Elefante e COLETIVO SYCORAX, 2019)

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