“Sabe no que dá um monte de mulher junto, né?”: um bom pacto a favor da vida

Por Andreia Fernandes

“Sabe no que dá um monte de mulher junto, né?” foi a fala que quase me causou indigestão um dia desses, enquanto eu almoçava com duas amigas. Dois homens conversando sobre o trabalho sentenciavam o quão difícil é trabalhar com as mulheres, insinuando que elas mais atrapalham do que de fato são eficientes. Não gastarei linhas me debruçando sobre as perversas falas e atitudes dessas pessoas. Do diálogo deles só aproveito a pergunta.

“Sabe no que dá um monte de mulher junto, né?”. A tal pergunta, eu respondo: um bom pacto a favor da vida que não mascare os conflitos. Há quem prefira chamar de um possível exercício de sororidade.

Da pauta dos movimentos feministas para a estampa de camisetas, a palavra sororidade junto a tantos outros conceitos, trilha um caminho construído a muitas mãos e a duras penas. Mais do que a estampa de uma camisa, um conceito ou filosofia, sororidade é uma das estradas possíveis para que a caminhada das mulheres avance em direção às conquistas necessárias.

E o que é sororidade? Essa palavra não está presente nos dicionários da língua portuguesa, assim como muito do que diz respeito à caminhada política das mulheres, também não. Dicionários são espaços de poder, no qual, felizmente, movimentos sociais têm se preocupado em disputar e ocupar.

Para a antropóloga feminista Marcela Lagarde (2006), sororidade é uma “aliança feminista entre as mulheres para transformar a vida e o mundo com um sentido justo e libertário”[1] (p.126).  O conceito não surge com a autora[2], mas ela é uma das intelectuais que o tem difundido e ressignificado na América Latina há bastante tempo.

Segundo Marcela, “sororidade é uma dimensão ética, política e prática do feminismo contemporâneo. É uma experiência das mulheres que conduz à busca de relações positivas e de aliança existencial e política” (idem).

No complexo cenário das ciências humanas, conceitos surgem, constroem-se ao mesmo tempo que são desconstruídos. Sororidade não é um conceito aceito de forma unânime entre feministas[3] e entre quem pesquisa gênero, assim alerta a própria autora. E que bom que seja assim.

Um conceito que se origina no cenário religioso, perpassa por atualizações no campo acadêmico, é cooptado pelos desfiles da Maison Dior, transforma-se em estampa de camisetas produzidas em larga escala, por mãos de mulheres mal remuneradas e, quiçá, escravizadas, precisa, sem dúvida, ser problematizado.   

Marcela, em seu texto, também se preocupa em dizer o que não é sororidade, destacando que não se trata de um pacto afetivo, embora o amor possa existir; que não requer concordância obrigatória e integral em relação a cosmovisões, mas sim a necessidade de acordar coisas pontuais, comuns, com cada vez mais mulheres.

A luta feminista não pode depender apenas de anuências afetivas e amorosas. É muito mais que isso: é exercício de construção e desconstrução, de engajamento, de superação de obstáculos, de desvelamento dos conflitos e tensões, de exercício intelectual e decolonial, de canalização de potência, de sentimentos (inclusive da raiva), para o respeito à vida das mulheres, um princípio ético acordado entre os mais diversos movimentos feministas.

Na busca de acordos propostos pela sororidade, pergunto-me: o que há de mais comum para ser acordado entre as mulheres? Levando-se em conta a pergunta que provocou esse texto, destaco: o desmonte de um imaginário coletivo sobre a incapacidade de uma convivência saudável entre mulheres e a desnaturalização da rivalidade entre nós.

Se na solidariedade o amor nos seduz às relações assistenciais, na sororidade, a vida nos confronta com a necessidade de desconstruirmos as relações opressoras entre nós, mulheres. De forma que tais acordos não sejam mecanismos de invisibilidade das feminilidades não hegemônicas. Para isso, torna-se fundamental um diálogo que provoque a escuta de narradoras historicamente silenciadas, garanta a multiplicidade das narrativas e o respeito ao lugar de fala.

O livro de Djamila Ribeiro “o que é lugar de fala?”[4] nos brinda com uma importante reflexão sobre esse conceito. Segundo a autora, ele tem a ver com o feminist stand point (ponto de vista feminista), fruto da reflexão de intelectuais negras, afro-americanas, a partir de lugares de marginalidade. Portanto, lugar de fala tem a ver com a localização dos grupos em relação aos espaços de poder e aos discursos hegemônicos. Este conceito explicita que as experiências dos diversos grupos, especialmente os “subalternizados”, a partir de seus lugares de fala, devem ser ouvidas e consideradas.

Pensar lugar de fala enquanto espaço social não garante, por parte de quem o ocupa, a responsabilidade com a transformação social. Assim, lugar de fala é um conceito político comprometido em disputar espaço para transformação social, com narrativas desestabilizadoras engajadas em uma hermenêutica que suspeite de saberes legitimados academicamente e de narradores hegemônicos.

Sabe no que dá um monte de mulher junto, né?

As narrativas machistas já consolidaram respostas pejorativas para esta pergunta. Por isso, é urgente que em sororidade sejam criadas narrativas de resistência, descolonizadoras e desestabilizadoras de uma ordem patriarcal comprometida, entre outras coisas, com o a naturalização e perpetuação da inimizade entre as mulheres.

Narrativas de resistência que não se calem quando cerceadas nas escolas “sem partidos”, mas que ecoem nas escolas da avenida do samba, anunciando profeticamente que “Brasil, chegou a vez de ouvir as Marias, Mahins, Marielles”[5]. Chegou a vez de enxergar que mulheres juntas pensam a sociedade, lutam contra as escravizações, denunciam milícias, empurram não só carros alegóricos, mas podem conduzir uma nação inteira.

Muitas mulheres juntas fazem um pacto pela vida quando denunciam a morte das outras mulheres e as injustiças perpetradas em conversas na hora do almoço ou em redes sociais de quem desmerece o privilegiado lugar político que ocupa.

Muitas mulheres juntas têm feito de dias como o 8 de março, não mais um território de flores e bombons, mas um campo arado a muitas mãos, com muita luta, onde se planta sementes que produzem frutos libertários de justiça para a garantia de vida digna para todas as pessoas.

Sobre a autora: Andreia Fernandes, caminhante na vida, seduzida por orquídeas, professora, pastora metodista, apaixonada por temas como educação, religião, bíblia, gênero, raça e tudo mais que busque a denúncia da injustiça e o anúncio da esperança de que um outro mundo é possível.


[1] LAGARDE DE LOS RIOS, Marcela. Pacto entre mujeres: sororidade. Madri: Coordinadora Española para el Lobby Europeo de Mujeres (CELEM), 2006. Disponível em <https://e-mujeres.net/wp-content/uploads/2016/08/pacto_entre_mujeres_sororidad.pdf>. Acesso em 05/07/2019.

[2] Para conhecer mais sobre Marcela Lagarde indico: Claves feministas para la negociación en el amor; Claves feministas para la autoestima de las mujeres; Claves feministas para liderazgos entrañables. Estas obras estão disponíveis na internet.  

[3] Para pensar sobre a problematização do conceito de sororidade indico: onda, rizoma e “sororidade” como metáforas: representações de mulheres e dos feminismos (Paris, Rio de Janeiro: anos 70/80 do século XX), de Suely Gomes da Costa. Revista Internacional Interdisciplinar INTERthesis, Florianópolis, v.6, n.2, p. 01-29, jul./dez. 2009. Disponível em: <https://periodicos.ufsc.br/index.php/interthesis/article/view/12107>. Acesso em 05/03/2019

[4] RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento: Justificando, 2017.

[5] Letra do samba-enredo História pra Ninar Gente Grande da Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira, 2019. Disponível em: < https://www.letras.mus.br/sambas/mangueira-2019/>. Acesso em 06/03/2019.

4 comentários

  1. Paula Ribeiro em 9 de março de 2019 às 01:47

    Nunca! Até hoje pensei ser possível que eu pudesse achar meu lugar no mundo. Hoje sei que tenho e posso ocupa-lo.

    • Andreia Fernandes em 11 de março de 2019 às 13:26

      Isso é ótimo! Que você compartilhe esse saber com outras manas

  2. Daniela Leão Siqueira em 11 de março de 2019 às 00:19

    Andreia, muito obrigada por compartilhar a sua indignação conosco e reforçar o ainda crescente (mas urgente!) conceito de sororidade. O meu desejo é que, compartilhando juntas, possamos construir um pacto para uma vida onde tod@s possam desenvolver as suas potencialidades, com oportunidades idênticas, pelo simples fato de sermos human@s. #NinguémSoltaaMãodeNinguém

    • Andreia Fernandes em 11 de março de 2019 às 13:28

      Você me ensina muito Daniela, caminhemos juntas, de mãos dadas, entrelaçadas.

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