Saber quem atirou em Marielle é só uma peça do dominó

Dois dias antes de completar um ano da morte de Marielle Franco e Anderson Gomes, dois homens foram presos acusados de executar o assassinato. O sargento reformado da Polícia Militar, Ronnie Lessa, de 48, e o ex-PM, Elcio Vieira de Queiroz, 46, tiveram prisões preventivas decretadas pelo juiz do 4º Tribunal do Júri, Gustavo Kalil, após denúncia da promotoria.

A denúncia do Ministério Público (MP) do Rio de Janeiro indica que Lessa teria atirado nas vítimas. Elcio foi quem dirigiu o veículo que perseguiu e consumou a emboscada enquanto a vereadora voltava para casa com sua equipe em 14 de março de 2018.

Este é um passo fundamental no processo investigativo do crime que marcou o Brasil internacionalmente. Mas, definitivamente, isso não significa o encerramento do caso. Enxergar justiça nas duas detenções significa ignorar, mas uma vez, a raiz do problema.

O Usina de Valores é uma iniciativa que nasceu uma semana depois da execução sumária da vereadora. Pessoas que dividiram os caminhos de luta com ela fazem parte da equipe, como Lana de Souza, articuladora do projeto no Rio de Janeiro, e Ingrid de Farias, em Recife.

“É difícil pensar que incomodamos gente grande, que o que a gente faz é motivo de ódio para algumas pessoas”, disse Lana em uma entrevista publicada no Usina de Valores semanas após o assassinato.

A preocupação da articuladora, que atua no coletivo de comunicação Papo Reto e denuncia a violência policial no Complexo do Alemão e em outras favelas da capital carioca, tem relação com a vulnerabilidade de ativistas nos extremos das cidades e do Brasil.

Nesta quarta-feira, 13, a jornalista e educadora Gizele Martins, integrante do coletivo Maré Vive, no Complexo da Maré, e que já foi educadora nas ações formativas do Usina, fez uma fala semelhante. Durante sua participação na Rádio Brasil Atual, em espaço dedicado ao Instituto Vladimir Herzog, ela afirmou que “há um retrocesso da liberdade de expressão nas favelas e no Rio de Janeiro como um todo”.

Quem mandou matar Marielle? Para Gisele, matou “quem não quer que a gente coloque pra fora o que acontece nas favelas e todo o histórico do que a gente é. O histórico da população negra e pobre, a que mais sofre com a falta dos direitos humanos no Brasil”.

Por isso, a equipe que integra o Usina de Valores tem convicção de que saber quem atirou em Marielle é só uma peça do dominó.

Os acusados representam a ponta de uma engrenagem sistêmica de violência que o movimento negro denúncia há tempos no Brasil: corpos negros e pobres são aniquilados por agentes de Estado com frieza e estratégia.

Tal afirmação é embasada em números. Um levantamento publicado pelo Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em novembro de 2017, indica que agentes policiais mataram o triplo de negros do que de brancos entre 2015 e 2016.

Este resultado chegou após a análise de boletins de ocorrência, desconsiderando as vítimas cuja informação de raça/cor não estava disponível. De 5.896 mortes executadas por policiais de folga ou em serviço, 963 foram de pessoas brancas e 3.240 de negras . Outras 1.642 mortes foram registradas como “não identificado” e mais 51 como “outros”.

Notícias dos grandes portais nos últimos dias afirmam que Lessa, acusado de matar Marielle e Anderson, era conhecido por sua frieza. Ele era citado como um habilidoso atirador entre os colegas e foi integrante do 9º BPM. A chacina de Vigário Geral, que assassinou 21 pessoas em 1993, foi executa por PMs que faziam parte deste mesmo batalhão.

Durante a coletiva de imprensa que aconteceu na última terça-feira, dia 13 de março, a polícia não descartou a possibilidade do crime ter sido encomendado. A possibilidade se sustenta no fato da execução ter sido “meticulosamente planejada” e pelos criminosos terem envolvimento com milícias no Rio de Janeiro.

Posto tudo isso à mesa, a morte de Marielle, uma das vereadoras mais bem votadas na cidade do Rio de Janeiro, simboliza o quão profunda é a mazela do racismo, do machismo e do controle social no Brasil. Autodeclarada cria da Maré, ela apontava e cobrava as mortes corriqueiras que engrossam, ano a ano, as estatísticas de homicídio e feminicídio no Brasil.

Um policial matar uma mulher negra que, além disso, reivindicava a vida de sua população é o mesmo que apontar uma arma na cabeça de todo um povo.

Marielle denunciava a intervenção no Rio de Janeiro e dava nome aos inúmeros jovens que são assassinados nas favelas, os policiais e moradores que perdem sua vida na guerra às drogas e permanecem desconhecidos. Descobrir quem mandou matar Marielle significa apenas um dos fios do emaranhado que perpetua a morte de milhares de outras pessoas anualmente.

Desde que o ativismo de Marielle Franco foi silenciado, outras chacinas aconteceram, mais jovens tiveram suas vidas ceifadas e outras ativistas de direitos humanos continuam em luta, inclusive, sob ameaças. Tê-la, hoje, viva e de fato presente, seria uma forma imprescindível para a luta de resistência contra este ciclo vicioso.

O fato é que Marielle se tornou uma símbolo internacional e sua trajetória é uma inspiração para outras mulheres, ativistas e defensores dos direitos humanos. A grande questão é o Brasil estar disposto a identificar e cobrar os mandantes que se sentem confortáveis em ceifar vidas negras e faveladas, continuamente.

1 comentário

  1. Ana Rosa Abreu em 15 de março de 2019 às 00:18

    Maravilhoso texto!! Marielle merece! Todos merecemos essa indignação!! Viva Marielle!! Presente como símbolo de nossas lutas e ao mesmo ausente, ela foi brutalmente retirada de nossas lutas. É isso é inadmissível.

Deixe um Comentário





quatro × quatro =