Para viver o cuidado da infância negra em comunidade

Com Carol Adesewa

Pensar a educação em contexto africano é pensar de forma comunitária

Resgatar tecnologias de cuidado tradicionais africanas e afro-diaspóricas* se faz necessário, defende a educadora Carol Adesewa, como forma de fortalecer e garantir a existência das futuras gerações negras. Essa é uma reflexão que a professora e escritora baiana traz ao Usina de Valores, pensando no Bem Viver, um dos valores que norteiam o projeto.

Segundo ela, tais estratégias de recentralização das narrativas de África são importantes para educação de crianças negras em uma sociedade estruturalmente desigual e tensionada pelo racismo, que tangencia as demandas das mulheres pretas e de toda a sua comunidade. Em contraponto a essa cultura individualista, ela nos lembra que há outra tradição: “Pensar a educação em contexto africano é pensar de forma comunitária”. A professora afrocentrada explica:

Em tradições de África, a educação de uma criança negra não é responsabilidade apenas da sua mãe ou do seu pai: e sim um dever coletivo de toda a comunidade garantir que essa criança inaugure a vida e nela permaneça em segurança. Nas culturas africanas, a ética da comunidade se contrapõe ao individualismo dos dias atuais”.

Ao Usina de Valores, a idealizadora do projeto Afoinfância desenvolve o conceito de cuidado e educação em culturas africanas para, a partir daí, refletir sobre como pode ser possível, na realidade brasileira atual, retomar e valorizar essas dinâmicas para viver o cuidado em comunidade.

Redes de apoio, tecnologia ancestral

Para Adesewa, tomar os valores africanos como referência na diáspora* é ter a consciência, principalmente, da centralidade da família como “uma das principais bases que sustenta o movimento de retorno às nossas raízes”.

Ela amplia o entendimento de família para uma rede estendida, ao citar Sobonfu Somé, em O Espírito da intimidade (2003): “A família na África é sempre ampla, a pessoa nunca se refere ao seu primo como primo, porque isso sim, seria um insulto, então ela chama os seus primos de irmãos e irmãs. Seus sobrinhos de filhos. Seus tios de pais. Suas tias de mães.”

Então a professora relembra como, em sua própria criação, o cuidado fazia parte de características culturais, filosóficas e espirituais: “Enquanto minha mãe trabalhava, as irmãs mais velhas cuidavam de mim, tias lactantes me amamentavam, primas penteavam os meus cabelos; a vizinha me acolhia em sua casa, enquanto me rezava, expulsando o mau-olhado; e a igreja, mesmo com todos seus problemas, também me recebia de maneira acolhedora”.

Sobre essa dinâmica compartilhada, Adesewa nos apresenta conceitos da Pedagogia Kindezi, como descritos por Fukiau em Kindezi: A arte kongo de cuidar de crianças (Terreiro de Griôs, 2017). Para os Bantu, em geral, e para os Kôngo, em particular, de acordo com Fukiau: “a chegada de uma criança na comunidade é o nascer de um novo e único sol vivo”. Portanto, é de responsabilidade da comunidade inteira ajudar esse sol vivo a brilhar.

Fukiau descreve ainda a atuação, nesta cultura, dos Ndezis: pessoas que praticam a arte do cuidar descrita na Pedagogia Kindezi. Com as Ndezis, crianças aprendem a ler, escrever, sobre fauna, flora, anatomia. Há Jovem Ndezi, Velho Ndezi e Ndezi ocasionais, por exemplo. Com a Ndezi cuidando das crianças, a mulher africana pode exercer outras atividades. “Desse modo, é constituído o que chamamos hoje em dia, no Ocidente, uma vasta e forte rede de apoio”, afirma Adeswa. Portanto, as redes de apoio tão discutidas na atualidade seriam, na análise dela, uma tecnologia de cuidado ancestral.

Atividade do Usina de Valores na Grande Vitória

Escola, parte da grande aldeia que cuida e educa crianças negras

Adesewa recomenda que famílias com interesse em resgatar sua história busquem escolas que possam fazer parte dessa “grande aldeia que cuida e educa as pessoas negras”. É um grande embargo, uma vez que a concepção educacional das escolas historicamente não reflete os corpos e a subjetividade da criança negra. À medida do possível, ela sugere buscar instituições onde a criança possa se reconhecer em seus colegas e professoras, onde o currículo valorize sua experiência de existir e que a história e cultura negra sejam centralizadas em seu cotidiano, para que hajam visões positivas de sua cultura.

Tudo isso, ela explica, não apenas para blindar a criança das manifestações do racismo em nossa sociedade, posto que isso, infelizmente, não é ainda possível, mas sim para construir um ambiente seguro, onde sua experiência e concepções de mundo sejam respeitadas. Adesewa finaliza:

Cabe a nós, pessoas adultas, retornar ao passado e resgatar tudo o que nos foi retirado, e viver a nossa noção de família, comunidade e crianças através de um espelho autêntico, não mais através de um espelho quebrado, imposto pelo racismo. Viver o cuidado em comunidade.”

*Diáspora africana: O termo “diáspora” tem a ver com dispersão e refere-se ao deslocamento de um povo pelo mundo. Segundo glossário da Fundação Palmares, diáspora africana é o nome dado a um fenômeno caracterizado pela imigração forçada de pessoas africanas, durante o tráfico transatlântico de escravizados. Compreende-se que a diáspora africana foi um processo que envolveu migração forçada, mas também redefinição identitária, uma vez que estes povos provenientes do que hoje são Angola, Benin, Senegal, Nigéria, Moçambique, entre outros, apesar do contexto de escravidão, reinventaram práticas e construíram novas formas de viver, possibilitando a existência de sociedades afro-diaspóricas como Brasil, Estados Unidos, Cuba, Colômbia, Equador, Jamaica, Haiti, Honduras, Porto Rico, República Dominicana, Bahamas, entre outras. 

Para saber mais

Artigo: A educação de crianças negras e o resgate de tecnologias ancestrais africanas, por Carol Adesewa

O Espírito da intimidade: Ensinamentos ancestrais africanos sobre relacionamentos, de Sobunfu Somé (2003)

Kindezi: A Arte Kongo de Cuidar de Crianças, de K. Kia Bunseki Fu Ki.Au e A.M. Lukondo-Wamba, traduzido por Mô Maie (Terreiro de Griôs, 2017)

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